terça-feira, 7 de abril de 2009

ENTRE CIÊNCIAS E ECOSOFIAS: notas de síntese

Por Sandra Rodrigues Braga


Boaventura de Sousa Santos (1988) recorda-nos que o campo teórico em que ainda nos movemos foi criado a partir da revolução científica do século XVI e os primeiros 20 anos do século passado, de modo que é possível dizer que, em termos científicos, o século XX ainda não começou.
Por outro lado, cada vez mais, se coloca em pauta a reflexão sobre os limites do rigor científico e seus laços com os perigos de uma catástrofe ecológica que faz temer pela continuidade do século XXI.
Em Discours sur les Sciences et les Arts, Jean Jacques Rousseau (1750), respondendo às questão “O progresso das ciências e das artes contribuirá para purificar ou para corromper os nossos costumes?”, “Há alguma razão de peso para substituirmos o conhecimento vulgar que temos da natureza e da vida e que partilhamos com os homens e mulheres da nossa sociedade pelo conhecimento científico produzido por poucos e inacessível à maioria?”, “Contribuirá a ciência para diminuir o fosso crescente na nossa sociedade entre o que se é e o que se aparenta ser, o saber dizer e o saber fazer, entre a teoria e a prática?”, a que Rousseau respondeu “não”. Mais de 250 anos depois, as perguntas de Rousseau continuam válidas e podem ser sintetizadas pela pergunta: “Qual a contribuição positiva ou negativa da ciência para a nossa felicidade?”.
A “racionalidade”, utilitária e funcional, que presidiu a ciência moderna, sob a lógica do determinismo mecanicista, vale menos pela capacidade de compreender o real do que pela capacidade de o dominar e transformar. Como diz Bacon, a ciência fará da pessoa humana “o senhor e o possuidor da natureza”.
Este modelo de racionalidade científica se distingue e se defende de duas formas de conhecimento não científico: o senso comum e as humanidades (história, filologia, direito, literatura, filosofia e teologia). No século XIX, este modelo, porém, se estende às ciências sociais emergentes, globalizando-se. A consagração da ciência moderna nos últimos 400 anos naturalizou a explicação do real, a ponto de não o concebermos senão nos termos por ela propostos (espaço, tempo, matéria e número). Por ser global, a nova racionalidade científica é também totalitária, negando o caráter racional a todas as formas de conhecimento não pautadas pelos seus princípios epistemológicos e suas regras metodológicas. É esta a característica que aparece em Discurso do Método, de Descartes, que, vai das ideias para as coisas e não das coisas para as ideias, estabelecendo a prioridade da metafísica enquanto fundamento último da ciência.
A ciência moderna desconfia das evidências da experiência imediata, que estão na base do conhecimento vulgar, provocando a total separação entre a natureza e o ser humano. A natureza é tão-só extensão e movimento; é passiva, eterna e reversível, mecanismo desmontável e relacionável sob a forma de leis. Conhecê-la é controlá-la. As ideias que presidem à experimentação são matemáticas: o rigor científico afere-se pelo rigor das medições. As qualidades intrínsecas do objeto são desqualificadas e, em seu lugar, passam a imperar as quantidades. O que não é quantificável é cientificamente irrelevante, o que reduz a complexidade do todo. Como afirma Descartes, uma das regras do Método consiste em dividir cada uma das dificuldades em tantas parcelas quanto for possível e requerido para melhor as resolver.
Um conhecimento baseado na formulação de leis pressupõe a ordem e estabilidade do mundo. A consciência filosófica da ciência moderna, que tivera no racionalismo cartesiano e no empirismo baconiano as suas primeiras formulações, veio a condensar-se no positivismo oitocentista. Como afirma Santos (1988), no plano social, esse horizonte cognitivo é o mais adequado aos interesses da burguesia ascendente.
Esta ordem científica, entretanto, vive uma crise de hegemonia, crise, tão profunda quanto irreversível. Para Santos (1988), esta crise é o resultado interativo de uma pluralidade de condições sociais e teóricas, posto que o próprio aprofundamento do conhecimento (Einstein teria sido o primeiro rombo no pilar do paradigma dominante) é o que permitiu ver a fragilidade dos pilares em que se fundava.
Torna-se claro que a totalidade do real não se reduz à soma das partes em que a dividimos para observar e medir, ao mesmo tempo em que a distinção sujeito/objeto perde os seus contornos dicotômicos e assume a forma de um continuum. Por outro lado, se as leis da natureza fundamentam o seu rigor na matemática, as investigações de Gödel demonstram que esse rigor carece ele próprio de fundamento e reconhecem que, como qualquer outra forma de rigor, assenta num critério de seletividade.
A teoria de Prigogine recupera os conceitos aristotélicos de potencialidade e virtualidade que a revolução científica do século XVI atirou ao lixo da história. São questionados os conceitos de lei e causalidade: assume-se que as leis têm um caráter probabilístico, aproximativo e provisório, ao passo que o conceito de causa se adéqua bem a uma ciência que visa a intervir no real e que mede o seu êxito pela intervenção.
Na ciência emergente, o conhecimento só se realiza enquanto tal na medida em que se converte em senso comum e que se sustenta que “todo o conhecimento científico-natural é científico-social”. De fato, a distinção dicotômica entre ciências naturais e sociais começa a deixar de ter sentido e utilidade. Os avanços recentes da física e da biologia põem em causa a distinção entre o orgânico e o inorgânico, entre seres vivos e matéria inerte e mesmo entre o humano e o não-humano. As características da autoorganização, do metabolismo e da autorreprodução, antes consideradas específicas dos seres vivos, são hoje atribuídas aos sistemas pré-celulares de moléculas.
Para Santos (1988), “todo o conhecimento é local e total”. Se o conhecimento avançou pela especialização, hoje se reconhecem os males desta parcelização do conhecimento e do reducionismo arbitrário que transporta consigo. Mesmo sendo local, o conhecimento emergente é também total, reconstituindo os projetos cognitivos locais, salientando a sua exemplaridade e transformando-os em pensamento total ilustrado. A ciência do paradigma emergente, sendo analógica, incentiva os conceitos e as teorias desenvolvidos localmente a emigrarem para outros lugares cognitivos, de modo a serem utilizados fora do seu contexto de origem. O conhecimento pós-moderno, sendo total, não é determinístico e, sendo local, não é descritivista. É um conhecimento sobre as condições de possibilidade.
Ao mesmo tempo, afirma Santos (1988), “todo o conhecimento é autoconhecimento”, já que a ciência não descobre, cria, e o ato criativo é protagonizado por cada cientista e pela comunidade científica. O privilegiamento de uma forma de conhecimento assente na previsão e no controle dos fenômenos nada tem de científico, é juízo de valor, autojustificação da ciência enquanto fenômeno central da contemporaneidade. A ciência é, assim, autobiográfica, característica que, no paradigma emergente, é plenamente assumida, já que “todo o conhecimento é autoconhecimento”.
No paradigma emergente, “todo o conhecimento científico visa constituir-se num novo senso comum”. O senso comum, prático e pragmático; reproduz-se colado às experiências de vida de dado grupo social e, assim, se afirma confiável. O senso comum desconfia da opacidade dos objetivos tecnológicos porque desdenha das estruturas que estão para além da consciência. Indisciplinar e ametódico, o senso comum aceita o que existe tal como existe; não ensina, persuade.
Como afirma Santos (1988), duvidamos suficientemente do passado para imaginarmos o futuro, mas vivemos demasiadamente o presente para realizarmos nele o futuro. Se a ciência moderna legou-nos um conhecimento funcional do mundo que alargou as nossas perspectivas de sobrevivência, é certo que as intensas transformações técnico-científicas tiveram como contrapartida desequilíbrios ecológicos que ameaçam a vida no planeta. A crise do paradigma científico dominante colocou em pauta os perigos mais evidentes que ameaçam o meio ambiente natural de nossas sociedades.
Félix Guattari (1990) critica a ecologia ambiental, por se contentar em abordar apenas danos industriais, numa perspectiva tecnocrática. O autor defende uma ecologia generalizada que terá por finalidade descentrar radicalmente as lutas sociais e as maneiras de assumir a própria psique, uma articulação ético-política, que denomina ecosofia, e que transita entre três registros ecológicos: o do meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade humana.
Alguns estudos, como o de Michel Serres (1991), propõem a retomada do contrato natural, entendido como uma nova ética que elimine o estado de guerra contra a Natureza, ou a do contrato animal, que se atém ao fato de que cada espécie deve limitar seu crescimento populacional o suficiente para permitir que outras formas de vida coexistam com ela.
O que está em questão é a maneira de viver daqui em diante neste planeta. Para Guattari (1990), não haverá verdadeira resposta à crise ecológica a não ser em escala planetária e desde que se opere uma autêntica revolução política, social e cultural reorientando os objetivos da produção de bens materiais e imateriais. Essa revolução é concernente, não só às relações de forcas visíveis em grande escala, mas também aos domínios moleculares de sensibilidade, de inteligência e de desejo. O trabalho social, regulado por uma economia de lucro e por relações de poder, levou-nos a dramáticos impasses, o que se manifesta nas tutelas econômicas que pesam sobre o Terceiro Mundo. A instauração de imensas zonas de miséria, fome e morte integra o monstruoso sistema de "estimulação" do Capitalismo Mundial Integrado e dá origem às novas problemáticas ecológicas.
As relações da humanidade com o socius, a psique e a "natureza" tendem a se deteriorar cada vez mais, não só em razão de nocividades e poluições objetivas, mas pelo desconhecimento e passividade fatalista dos indivíduos e dos poderes com relação a essas questões em seu conjunto. Catastróficas ou não, as evoluções negativas são aceitas tais como são. Uma responsabilidade e uma gestão mais coletiva se impõem para orientar as ciências e as técnicas em direção a finalidades mais humanas.
Guattari (1990), porém, não pretende um retorno ao trabalho, já que jamais o trabalho humano ou o habitat voltarão a ser o que eram antes das revoluções informáticas, robóticas, genéticas e depois da mundialização dos mercados. A aceleração das velocidades de transporte e de comunicação, a interdependência dos centros urbanos são irreversíveis e temos que admitir que será preciso lidar com esse estado de fato, o que demanda uma recomposição dos objetivos e dos métodos.
As três ecologias se desprendam dos paradigmas pseudocientíficos, implicando uma lógica diferente: enquanto a lógica discursiva limita muito bem seus objetos, a lógica das intensidades, ou a eco-lógica, leva em conta apenas o movimento, a intensidade dos processos evolutivos. Ao sistema, o filósofo contrapõe o processo, o “se por a ser” que diz respeito apenas a certos subconjuntos expressivos que romperam com seus encaixes totalizantes e se puseram a trabalhar por conta própria. Também encontra a eco-lógica operando na vida cotidiana, nos diversos patamares da vida social e na constituição de territórios existenciais.
A ecologia social deve trabalhar na reconstrução das relações humanas em todos os níveis do socius, não perdendo de vista que o poder capitalista se deslocou, se desterritorializou, em extensão - ampliando seu domínio sobre a vida social, econômica e cultural do planeta - e em “intenção” - infiltrando-se no seio dos mais inconscientes estratos subjetivos. Assim, não é possível se opor a ele apenas de fora, por meio de práticas sindicais e políticas tradicionais, mas deve-se encarar seus efeitos no domínio da ecologia mental, da vida cotidiana individual, doméstica, conjugal, de vizinhança, de criação e ética pessoal. A questão, no futuro, será a do cultivo do dissenso e a produção singular de existência.
A eco-lógica não mais impõe “resolver” os contrários, como queriam as dialéticas hegelianas e marxistas. Uma imensa reconstrução das engrenagens sociais é necessária para fazer face aos destroços do capitalismo mundial. Essa reconstrução passa menos por reformas de cúpula, leis e programas burocráticos do que pela promoção de práticas inovadoras, pela disseminação de experiências alternativas, centradas no respeito à singularidade e na produção de subjetividades que vai se articulando ao resto da sociedade. Para além de uma renda mínima garantida para todos - reconhecida como direito -, meios de levar avante empreendimentos individuais e coletivos, no sentido de uma ecologia da ressingularização.
O princípio da ecologia ambiental é o de que tudo é possível tanto as piores catástrofes quanto as evoluções flexíveis. Cada vez mais, os equilíbrios naturais dependerão das intervenções humanas. Um tempo virá em que a aceleração dos “progressos” técnico-científicos, conjugada ao enorme crescimento demográfico, desencadeará uma corrida para dominar a mecanosfera.
Fazer emergir outros mundos dos da pura informação abstrata; engendrar universos de referência e territórios existenciais, em que a singularidade e a finitude sejam levadas em conta pela lógica multivalente das ecologias mentais e pelo princípio da ecologia social, tais são as vias embaralhadas da tripla visão ecológica. Uma ecosofia, ao mesmo tempo prática e especulativa, ético-política e estética, deve, segundo Guattari (1990), substituir as antigas formas de engajamento religioso, político e associativo.
No mínimo por corrermos o risco de não mais haver história se a humanidade não se reassumir radicalmente, trata-se de conjurar o crescimento entrópico da subjetividade dominante, de se reencontrar consistência em novas práticas sociais, estéticas, na relação com o outro, com o estrangeiro e o estranho. Na articulação da subjetividade nascente, do socius mutante, do meio em ponto de reinvenção, está a saída da crise. Concluindo, Guattari (1990) afirma que as três ecologias deveriam ser concebidas como sendo da alçada de uma disciplina comum ético-estética e, ao mesmo tempo, como distintas uma das outras do ponto de vista das praticas que as caracterizam, sendo seus registros da alçada do processo contínuo de ressingularização.
Como afirma Santos (1988), sabemo-nos a caminho mas não exatamente onde estamos na jornada, já que, se todo o conhecimento é autoconhecimento, todo o desconhecimento é autodesconhecimento.

REFERÊNCIAS

GUATTARI, Félix. As três ecologias. Tradução de Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas: Papirus,1990.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós-moderna. Estudos Avançados, São Paulo, v. 2, n. 2, maio/ago.1988.

DO DISCURSO CARTESIANO ÀS TRÊS ECOLOGIAS

Por Valter Machado da Fonseca


Introdução

Este texto busca construir elementos para uma reflexão, a partir dos aspectos levantados por Guattari em seu texto: “As três ecologias” em contraposição à abordagem cartesiana. Vivenciamos, nos tempos presentes, mais uma crise cíclica do capital, comparável ao “Crash” da bolsa de Nova Yorque de 1929.
Esta crise que abala os pilares fictícios das principais economias capitalistas mundiais vem demonstrar que o modelo adotado, para garantir a reprodução e expansão do capital, não dá conta de sua tarefa. Au contraire, vem reafirmar que para se manter de pé, ele precisa aprofundar a enorme desigualdade social que marca os tempos modernos. Para garantir o sucesso da mais-valia se faz necessário excluir milhões de homens e mulheres do processo produtivo. É preciso aprofundar a exclusão social, a segregação sócio-espacial, o desemprego, a fome e a miséria. Ou seja, para que o capital possa se reproduzir, visando garantir as engrenagens que mantém o movimento das forças produtivas deste modelo econômico, se faz necessário organizar um grupo seleto de aristocratas em detrimento do bem-estar social de largas parcelas da humanidade.
O epicentro da chamada “sociedade Global” localiza-se exatamente sobre a necessidade urgente da expansão e reprodução do capital e, para isso não se medem esforços, nem conseqüências. Observa-se a brutalidade da expansão e reprodução do capital através da fome e da miséria absolutas que se espalham por todo o planeta. No mundo todo são milhões e milhões de desempregados e famintos, um exército de zumbis que compõem a reserva de mão de obra barata e descartável a serviço do capital.
Se por um lado a globalização econômica esconde-se por detrás de um discurso inovador, por outro ela aprofunda as contradições do modo de produção capitalista. Essas contradições expressam-se através do desemprego, da violência urbana, da fome, da miséria, do analfabetismo, das doenças e das condições subumanas da maioria da população do planeta. Então, a quem serve a globalização econômica? Em que ela favorece a grande maioria da população mundial? Para onde vão as riquezas produzidas pela expansão e reprodução do capital? Essas indagações só podem levar a uma única conclusão: a armadilha do discurso da inovação tecnológica e científica expressa na globalização, tenta em vão esconder a outra face da moeda, ou seja, a crise civilizacional, ocidental ou da modernidade.

1. O método positivista/cartesiano mantém vivo o “Gigante dos pés de barro”.

O tecnicismo e os princípios da razão instrumental que norteiam a ciência moderna entram em gritante contradição com as necessidades vitais de grandes contingentes da população mundial. O positivismo de Auguste Comte reforçado com o “Discurso do Método” de René descartes é responsável pela fragmentação do conhecimento, visando reforçar a idéia de progresso e (des)envolvimento das nações.
Que progresso é este que se justifica por meio da destruição do planeta? Que progresso é este que para se sustentar tem que destruir vidas alheias? Que desenvolvimento é esse que leva continentes inteiros à situação de miséria, para sustentar o bem-estar social das nações ditas desenvolvidas? Que desenvolvimento é esse, onde as nações desenvolvidas utilizam as nações pobres como depósito de lixo? Que desenvolvimento é esse, onde as nações para demonstrar supremacia econômica têm que produzir armamentos nucleares, transformando o planeta num depósito de lixo atômico? A humanidade precisa responder, urgentemente a estas questões, se quer, realmente, alcançar o tão almejado “progresso” e o tão cobiçado “desenvolvimento”.
O desenvolvimento das técnicas e da ciência embasado nos princípios comtianos/cartesianos coloca como prioridade da humanidade os anseios de poucos em detrimento das necessidades da maioria. Substitui os projetos sociais vitais para a continuidade da vida humana pela ganância da mais-valia capitalista. Assim a grande maioria da humanidade é transformada em ferramenta da manutenção do mercado de consumo que regula a economia capitalista. Os projetos de transformação social, artísticos, literários, de resgate da dignidade humana são transformados em mercadorias a serviço do capital. Eles são transformados em projetos de consumo de bens produzidos para a expansão do capital. Neste sentido, o capital constrói seu marketing. O marketing do consumismo, com vistas a aquecer os mercados consumidores.
Mas, na crise do capital, que ora presenciamos, estas contradições se tornam mais claras, mais visíveis. A Terceira Revolução Tecnológica, embasada num discurso globalizador, que promete sonhos, bem-estar social, uma vida sem barreiras e sem fronteiras, descortina uma “nova” crise, sem precedentes, uma crise de projetos de homem e de natureza. Cabe às ciências sociais fazer estas reflexões, cabe a elas a busca de solução para o resgate da dignidade humana, visando afastar a humanidade dos trilhos da barbárie. Vejamos o que nos diz Michael Lowy (1978):

É possível a objetividade nas ciências sociais? Trata-se de uma objetividade do mesmo tipo que a das ciências naturais, como afirmam os positivistas? Não é a ciência social necessariamente “engajada”, quer dizer, ligada ao ponto de vista de uma classe social? Como conciliar esse caráter “partidário” com o conhecimento objetivo da verdade? Essas questões se encontram no centro do debate metodológico na Sociologia, na História, na Economia Política, na Antropologia, na ciência política e na epistemologia há mais de um século. [...] a idéia central da corrente positivista é de uma simplicidade evangélica: nas ciências sociais, como nas ciências da natureza, é necessário afastar os preconceitos e as pressuposições, separar os julgamentos de fato dos julgamentos de valor, a ciência da ideologia. A finalidade do sociólogo ou do historiador deve ser a de atingir a mesma neutralidade serena, imparcial e objetiva do físico, do químico e do biólogo. (LOWY, 1978, p.9-10)

No mesmo sentido, István Mészáros (2004, p.301) tece uma importante consideração:

Em parte alguma o mito da neutralidade ideológica – a autoproclamada wertfreiheit, ou neutralidade axiológica, da chamada “ciência social rigorosa” – é mais forte do que no campo da metodologia. Na verdade, encontramos com freqüência a afirmação de que a adoção deste ou daquele quadro metodológico nos isentaria automaticamente de qualquer controvérsia sobre os valores, visto que eles são sistematicamente excluídos (ou adequadamente “postos entre parênteses” ) pelo próprio método cientificamente adequado, poupando-nos assim de complicações desnecessárias e garantindo a objetividade desejada e o resultado incontestável. [...] na verdade, esta abordagem da metodologia tem um forte viés ideológico e conservador. [...] acredita-se que a mera insistência no caráter puramente metodológico dos critérios estabelecidos legitima a afirmação de que a abordagem em questão é neutra porque todos podem adotá-la como o quadro comum de referência do “discurso nacional”. Mas, muito curiosamente, os princípios metodológicos propostos são definidos de tal forma que áreas de grande importância social são excluídas a priori deste discurso nacional por serem “metafísicas”, “ideológicas”, etc.

Ora, os autores acima apontam no sentido da ruptura com os princípios cartesianos e positivistas, como forma de superação da crise provocada pela fragmentação do conhecimento e pelos fundamentos da razão instrumental, rumo à edificação de outra racionalidade, a racionalidade social.
Neste sentido, a ação dos estudiosos do campo das ciências humanas deve ser focada na unificação do conhecimento, na reconquista das raízes filosóficas que pode trazer para a humanidade o livre exercício de pensar, o livre exercício de formular outros projetos de homem e de natureza rumo à construção de outra racionalidade, que traga de volta a dignidade humana, em contrapartida à “lógica” da mais valia. É fundamental reconquistar o direito de a humanidade gerir seu próprio destino por intermédio da escolha de seu projeto de mundo e de vida, garantindo o resgate de sua dignidade.

2. As três ecologias no contexto da crise paradigmática da modernidade.

Em sua obra “As três ecologias”, Félix Guattari lança seu olhar sobre os principais problemas que afligem a sociedade neste limiar do século XXI:

As formações políticas e as instâncias executivas parecem totalmente incapazes de apreender essa problemática no conjunto de suas implicações. Apesar de estarem começando a tomar uma consciência parcial dos perigos mais evidentes que ameaçam o meio ambiente natural de nossas sociedades. Elas geralmente se contentam em abordar o campo dos danos industriais e, ainda assim, unicamente numa perspectiva tecnocrática, ao passo que só uma articulação ético-política – a que chamo ecosofia – entre os três registros ecológicos (o do meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade humana) é que poderia esclarecer convenientemente tais questões. [...] O que está em questão é a maneira de viver daqui em diante sobre esses planeta, no contexto da aceleração das mutações técnico-científicas e do considerável crescimento demográfico. (GUATTARI, 1991, p.7)

Nesta formulação, Guattari (1991) destaca três dimensões essenciais à compreensão das principais problemáticas da modernidade. Ele destaca as dimensões ambientais, as relações sociais e a subjetividade humana. Concordando com o autor, a análise destas três dimensões ilumina as reflexões sobre as grandes questões que se abatem sobre a sociedade contemporânea.

2.1 A dimensão ambiental

A dimensão ambiental se manifesta por meio das drásticas consequências que se abatem sobre o ecossistema planetário nos dias atuais. A catástrofe ambiental, em curso, nos dias atuais é herança direta da fragmentação do conhecimento e da razão instrumental que regem o modo de produção capitalista. A Revolução Industrial foi o marco histórico que abriu o flanco para a exploração desordenada dos recursos da natureza.
A partir daí a natureza, sábia por excelência, começou a responder aos ataques contra ela desferidos. Esta resposta veio na forma de grandes catástrofes, como o buraco na camada de ozônio, o derretimento de geleiras e das calotas polares, ocasionado assim, a elevação do nível das águas oceânicas, a elevação do número de enchentes e inundações, os terremotos e maremotos, os furacões e tornados, o aumento do efeito estufa, o aquecimento global, alterações climáticas, desertificação de extensas regiões do planeta, dentre diversos outros fatores.
Guattari desenvolve uma importante formulação a este respeito:

Não haverá verdadeira resposta à crise ecológica a não ser em escala planetária e com a condição de que se opere uma autêntica revolução política, social e cultural reorientando os objetivos da produção de bens materiais e imateriais. Essa revolução deverá concernir, portanto, não só às relações de forças visíveis em grande escala, mas também aos domínios moleculares de sensibilidade, de inteligência e de desejo. Uma finalidade do trabalho social regulada de maneira unívoca por uma economia de lucro e por relações de poder só pode, no momento, levar a dramáticos impasses – o que fica manifesto no absurdo das tutelas econômicas que pesam sobre o Terceiro Mundo e conduzem algumas de suas regiões a uma pauperização absoluta e irreversível; fica igualmente evidente em países como a França, onde a proliferação de centrais nucleares faz pesar o risco das possíveis consequências de acidentes do tipo Chernobyl sobre uma grande parte da Europa. Sem falar do caráter quase delirante da estocagem de milhares de ogivas nucleares que, á menor falha técnica ou humana, poderiam mecanicamente conduzir a um extermínio coletivo. (GUATTARI, 1991, p.8-9)

A formulação do autor coloca em evidência a dramaticidade das consequências da degradação ambiental do ecossistema planetário, onde a tecnologia nuclear é apenas um dos aspectos de deterioração do ambiente.

2.2 As relações sociais e a subjetividade humana

Essas duas dimensões, aliadas à questão ambiental, constituem o grande diferencial da obra de Guattari. Elas permitam analisar os fenômenos sociais à luz da complexidade do pensamento humano. Ao introduzir a análise dos aspectos ligados às relações sociais, o autor volta seu olhar para a necessidade do debate acerca da necessidade de se retomar os valores perdidos pela irracionalidade da razão instrumental. Valores como solidariedade, ética, compromisso com a vida em todas suas formas, além dos princípios morais coletivos e individuais perdem, cada dia mais, o sentido diante da “lógica” da mais valia e do consumismo, que permeiam este modelo econômico de produção.
Já a inclusão da dimensão subjetiva do pensamento nos permite retomar o centro nervoso que determina a dinâmica das ciências humanas. Em que se embasa o estudo das ciências sociais, senão na observação das relações sociais e na subjetividade do pensamento humano? A inclusão destas duas categorias de análise dos objetos em ciências sociais diferencia, por completo, o pensamento de Guattari em relação ao de Descartes.
O estudo da subjetividade humana abre o canal para que se possa pensar em uma metodologia própria em ciências humanas, resgatando os princípios do pensamento filosófico na construção de novos projetos tanto de homem quanto de natureza. Ele recoloca em discussão exatamente os elementos descartados por Descartes em sua linguagem puramente matemática de seu “Discurso do Método”. Aqui não se trata de desprezar os métodos até aqui utilizados pelas ciências naturais, mas de retomar categorias fundamentais de análise dos fenômenos sociais.
O pensamento humano, ele próprio é constituído na subjetividade, isto é, nos gostos, nas crenças, nos costumes, na liberdade de criação tanto individual quanto coletiva. O conhecimento, como fruto das experiências e do exercício intelectual do ser humano é totalmente ideológico e não pode se constituir em dogmas, em verdades absolutas, acabadas, definitivas. O conhecimento social, como fruto do pensamento humano, se embasa em projetos de homem e de natureza, conforme os anseios individuais e/ou coletivos e definidos pela sua experiência de vida em sociedade. Assim, na verdade, quando Félix Guattari trata de suas três ecologias ele não faz nada mais que lançar as categorias necessárias para a compreensão deste mundo e para a elaboração de novos projetos de mundo, de vida, de homem e de natureza. É nesta direção que deve caminhar a produção filosófica no campo das ciências humanas, por intermédio da investigação que leve em consideração as idéias, as preferências, os costumes as contradições e as experiências individuais e coletivas do homem, enquanto ser pensante, comunicante e transformador da realidade em que vive. Um agente transformador, dentro de uma perspectiva histórica e social de construção da realidade social.

3 Referências:

LOWY, Michael. Método dialético e teoria política. 4 Ed. Trad. Reginaldo Di Piero. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.__(Coleção Pensamento Crítico; v. 5)

GUATTARI, Félix. As três ecologias. 16 Ed. Trad. Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas, SP: Papirus, 1991.

MÉSZÁROS Ístvan. O poder da ideologia. Trad. Paulo César Castanheira, São Paulo: Boitempo, 2004.

NEEFICS: Uma Breve Análise Acerca das Temáticas Apresentadas.

Por Carmem Lúcia Ferreira

1. Iniciando a discussão:

Renée Descartes foi o primeiro filósofo sugerido para dar início às discussões e debates do Núcleo de Estudos em Educação, Filosofia e Ciências Sociais do Triângulo Mineiro – NEEFICS, com uma de suas obras mais conhecidas: O Discurso do Método.
Considerando a relevância de sua obra, creio que foi pertinente tê-la como ponto de partida em nossos embates, visto que a mesma foi considerada o marco do pensamento filosófico, em um momento em que se fazia necessário um novo modelo de pensamento, rompendo com o paradigma do poder da Igreja católica sobre a educação, política e economia. Nesta época (séculos XV e XVI) já haviam estudiosos preocupados com um novo modelo de educação, acreditavam que era preciso “uma educação que formasse novas gerações para entender e atuarem no mundo, não apenas para contemplá-lo”.
Embora Descartes sempre reafirmasse sua crença em Deus e na Igreja católica, vale lembrar que sua obra foi escrita no século XVII, quando o período denominado de Santa Inquisição, estava ainda apenas adormecido, pois teve sua queda em meados do século XV e início do século XVI. Acredito que para o grupo o que ainda não ficou muito claro foi a “intencionalidade” com que Descartes escreveu sua obra.

2. Edgar Morin: A Educação Inserida no Contexto da Complexidade do Mundo.

Edgar Morin foi o Segundo filósofo indicado para leitura e discussão do grupo, através de sua obra: Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro, fazendo o contraponto com a leitura de Descartes. É impressionante como foram feitas várias pontuações que realmente contrapõem às idéias do primeiro autor.
Morin é um estudioso da complexidade e da subjetividade humana e trouxe este estudo focado para a educação – a educação do futuro. Em sua obra ele discorre sobre o “erro e a ilusão”, ou seja, o erro que os educadores cometem em passar o conhecimento, sem conhecer o que se está ensinando.
Isto não é uma crítica aos educadores, mas sim ao sistema, ao modo de produção capitalista que estrutura os currículos escolares, visando qualificar a mão de obra para atender a economia de mercado, ou seja, a educação vista como mercadoria.
Num outro momento, o autor defende que:

A educação do futuro, em sua missão de promover a inteligência geral dos indivíduos, deve ao mesmo tempo utilizar os conhecimentos existentes, superar as antinomias decorrentes do progresso nos conhecimentos especializados e identificar a falsa racionalidade. (MORIN, 2001, p. 11)
Neste sentido Morin faz um contraponto direto à obra de Descartes, que defendia a racionalidade técnica.

3. ECOSOFIA: Meio Ambiente/ Relações Sociais/ Subjetividade Humana.

As Três Ecologias de Félix Guattari está inserida no contexto das discussões, estabelecendo relações com os dois autores anteriormente citados. Guattari, em sua obra enfoca as transformações técnico-científicas sofridas pelo nosso planeta nos tempos modernos. Ele faz um paralelo entre o meio ambiente, as relações sociais e a subjetividade humana, daí o título de sua obra: As três Ecologias.
Com o advento da Terceira Revolução Tecnológica, marcado fundamentalmente, pelo avanço da tecnologia de ponta, das telecomunicações, do transporte e da informática, surge a chamada globalização, “diminuindo”, a distância entre os povos. Neste sentido Guattari, assevera:

As relações da humanidade com o socius, com a psique e com a “natureza” tendem, com efeito, a se deteriorar cada vez mais, não só em razão de nocividades e poluições objetivas, mas também pela existência de fato de um desconhecimento e de uma passividade fatalista dos indivíduos e dos poderes com relação a essas questões consideradas em seu conjunto. Catastróficas ou não, as evoluções negativas são aceitas tais como são. O estruturalismo – e depois o pós-modernismo – acostumou-nos a uma visão de mundo que elimina a pertinência das intervenções humanas que se encarnam em políticas e micropolíticas concretas. (GUATTARI, 2001, p.23)

De acordo com a citação do autor nota-se sua preocupação com a humanidade dentro de um contexto, aliando espaço às relações pessoais e ao interior de cada pessoa, o subjetivo humano, enquanto sujeitos da história.
Os elementos apontados e destacados neste texto abrem o grande desafio de direcionar o desenvolvimento técnico-científico para a solução dos grandes e graves problemas que assolam a humanidade.
Caso contrário, várias espécies estarão, indubitavelmente, sujeitas à extinção e dentre elas, o homo sapiens. “A luta é para que a ciência avance de uma tecnocracia que domina o homem, para uma tecnologia a serviço da humanidade”.

4. Considerações parciais

O estudo destas obras, até o presente momento, foi relevante, pois permite uma reflexão sobre a fundamentação do método cartesiano (que embasa as ciências naturais), tendo como contraponto obras que se embasam na ciência da complexidade (Edgar Morin) que realça os aspectos subjetivos do pensamento social, além do enfoque das três dimensões (ambiental, relações sociais e subjetividade humana) defendidas por Félix Guattari e que, no fim das contas, acaba por completar o pensamento de Morin.
Tanto o pensamento de Morin quanto o de Guattari discutem as bases para o desenvolvimento de uma postura crítica ao “Discurso do Método” de Descartes. Assim, o nosso estudo começa a abrir espaços para o debate concreto dos aspectos que pontuam as ciências humanas.

5. Referências

FONSECA, V. M; FERREIRA, C. L. Biopirataria: Uma reflexão sobre o tráfico do patrimônio genético dos biomas brasileiros. Destaque IN. Sacramento (MG): Nº. 64, Julho/Agosto (2005), p.9-11.
GUATTARI, F. As três ecologias. 16 ed. Trad. Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas, SP: Papirus, 1990.
MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Trad. Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya; Revisão Técnica de Edgard de Assis Carvalho. 10 ed. São Paulo: Cortez, DF: UNESCO, 2005.

Nasce o discurso do método. Disponível em: http://educaterra.terra.com.br/voltaire/cultura/descartes3.htm, acesso em 07/03/2009

quarta-feira, 1 de abril de 2009

CONTAMINAÇÃO DAS ÁGUAS: Um reflexo das contradições do modelo capitalista de produção



Por Valter Machado da Fonseca

Foto: Governo do Espítito Santo
O sistema capitalista, de um lado, conseguiu imprimir com grande eficiência, o avanço técnico-científico nas áreas de superprodução de bens de consumo, da indústria química e petroquímica, da automação, robótica, nuclear, armamentos, de engenharia genética, de eletro-eletrônicos, de alimentos, etc.; além de imprimir um novo ritmo à indústria da informática, das telecomunicações e dos transportes. Por outro lado, ele promoveu a marginalização de largas camadas da humanidade, o aparecimento de novas doenças, o ressurgimento de doenças medievais, principalmente nos países atrasados; a desnutrição, o acúmulo de todo o tipo de lixo, a destruição de grande parte da vegetação, a contaminação das águas e do solo, a substituição de biomas inteiros, como o Cerrado, por atividades agropecuárias.
As conseqüências do impacto ambiental foram as mais drásticas possíveis. Já no início da Revolução Industrial, com a utilização das máquinas a vapor, iniciou-se um violento ataque à biomassa do planeta, com milhões de km² de florestas virgens sendo devoradas para a manutenção da indústria de base, principalmente a siderurgia.
A degradação das florestas veio acompanhada da poluição das águas por produtos químicos e resíduos, advindos das indústrias. O desenvolvimento tecnológico trouxe novos tipos de poluição. Com a superprodução industrial, surgem outros tipos de poluição que afetam, além das águas superficiais e subterrâneas, também os solos, a atmosfera e os seres vivos, dentre eles o homem. Hoje convivemos com os perigos decorrentes da poluição atmosférica, do acúmulo de lixo doméstico e resíduos industriais, do excesso de lixo tóxico e nuclear, além dos problemas causados pela emissão de gases tóxicos para a atmosfera, como o efeito estufa, as chuvas ácidas e o buraco na camada de ozônio.
A visibilidade real das catástrofes ecológicas, promovidas pelo capitalismo, desviou e descentralizou o eixo de intervenção prática de muitos militantes e ativistas políticos. Eles deixaram de atacar as raízes da problemática ambiental, para cuidar apenas das conseqüências provocadas pela "lógica" desse modo de produção. Com isso, amplos setores dos movimentos populares e sociais se engajaram, definitivamente, nos movimentos ambientalistas.
A eclosão dos movimentos ecológicos e ambientalistas coincide exatamente com a 1ª conferência mundial sobre o meio ambiente realizada em Estocolmo (1972). Vinte anos depois, a conferência das Nações Unidas, realizada no Rio de Janeiro - a Rio 92 - tentou refazer um balanço de degradação ambiental no planeta e, consequentemente, dos problemas sociais que afetam a maioria da população global. Tentou-se relacionar desenvolvimento técnico-científico, degradação ambiental e fome. Tal conceito ficou assim elaborado: é aquele que “atende às necessidades do presente, sem comprometer a possibilidade das gerações futuras de atenderem às suas próprias necessidades” (CMMAD, 1991, p. 46). Ele vem causando inúmeros debates e polêmicas nos dias de hoje.
O conceito de desenvolvimento sustentável traz consigo toda a "lógica" do modo de produção capitalista, colocando, mais uma vez, o homem acima da natureza e não como integrante dela , carregando-se de uma visão puramente economicista.
É exatamente dentro deste contexto das contradições oriundas do modelo de desenvolvimento capitalista que se situa a problemática da contaminação das águas.
A mídia comumente tenta repassar falsas concepções a respeito desta problemática como: "a água do planeta está ameaçada de extinção" ou, "a população que joga seu lixo nas ruas ou nos lagos, córregos e riachos é responsável pelas catástrofes ou inundações, etc.". Este procedimento, muito comum, da mídia é a simplificação do problema, trata-se de um método ilusório de focalizar o problema em simples casos isolados, tentando jogar o ônus da crise ambiental sobre os ombros da população, tentando julgar o comportamento dos indivíduos desconsiderando o modelo ilógico de desenvolvimento do país.
Em primeiro lugar, a quantidade de água existente no planeta não está diminuindo ou aumentando, ela se mantém constante, pois é regulamentada pelo ciclo da água que determina sua movimentação em seus diversos estados (sólido, líquido e gasoso), em uma dinâmica perfeita que mantém constante a quantidade de água no planeta.


Em segundo lugar, o comportamento dos indivíduos, em um determinado país, está condicionando a aspectos que determinam o modelo de desenvolvimento deste país. A educação é um dos principais fatores a ser considerado para se determinar o grau de desenvolvimento, de qualidade de vida, de bem-estar de um povo. Nos países subdesenvolvidos como o Brasil, a educação é relegada ao segundo plano. Como se pode exigir de um povo totalmente excluído do processo educacional, qualquer compromisso com a preservação ambiental? É um comportamento hipócrita, irresponsável e inconseqüente jogar o ônus de uma crise econômica e política nas costas de uma população cada vez mais à margem do processo produtivo.
Este artigo se propõe apenas a dar uma leve pincelada na essência, na raiz da problemática ambiental e, consequentemente, no problema crônico da contaminação das águas. Pretende-se discutir a ação antrópica como agente de interferência no equilíbrio do ecossistema terrestre. Isto vai influir diretamente na qualidade das águas, ou seja, na diminuição da quantidade de água potável necessária para garantir, minimamente, a qualidade e a própria continuidade da vida no planeta, o que é diferente de afirmar que a quantidade de água existente no planeta está diminuindo.
O problema da contaminação das águas está incluído no conjunto de problemas ambientais, decorrentes do modo de produção capitalista e, portanto, não pode ser analisado separadamente, através de uma visão fragmentada dos problemas ambientais. Ele faz parte de um processo complexo que inclui um amontoado de impactos ambientais sobre os biomas terrestres, decorrentes do modelo de desenvolvimento capitalista.
CARLOS SCCOMAZZON descreve assim a situação da degradação ambiental:

[...] os padrões dominantes de produção e consumo estão causando devastação ambiental, redução dos recursos e uma massiva extinção de espécies. Comunidades estão sendo arruinadas. Os benefícios do desenvolvimento não estão sendo divididos eqüitativamente e o fosso entre ricos e pobres está aumentando. A injustiça, a pobreza, a ignorância e os conflitos violentos têm aumentado e são causa de grande sofrimento. O crescimento sem precedentes da população humana tem sobrecarregado os sistemas ecológico e social. As bases da segurança global estão ameaçadas. Essas tendências são perigosas, mas não inevitáveis. (SCOMAZZON, 2003)

A definição de Scomazzon aponta os elementos que caracterizam a situação das diferenças sociais e da degradação do modelo capitalista contemporâneo, dentro da "lógica" da globalização econômica. É esse conjunto de fatores políticos, econômicos e sociais que se deve observar para se ter um perfeito entendimento da real situação da degradação ambiental no globo terrestre e especificamente da problemática da contaminação das águas.
Desde o início de sua existência, o homem tem causado impactos sobre o ambiente. Mas, foi a partir do início do desenvolvimento da sociedade capitalista, que estes impactos se intensificaram, extraordinariamente, trazendo conseqüências drásticas para os ecossistemas terrestres, causando um desequilíbrio, sem precedentes, nas forças que mantém esses ecossistemas, colocando em risco a existência das espécies de seres vivos, e dentre elas o próprio homem.
A Revolução Industrial trouxe em seu bojo um ataque violento à biomassa do planeta, promovendo em seu início os primeiros grandes impactos ambientais sobre as forças de equilíbrio dos ecossistemas. A indústria petroquímica aliada à superprodução de bens de consumo trouxe um dos piores tipos de poluição, cujas conseqüências drásticas estão mais visíveis na modernidade. A superprodução de bens de consumo produz milhões de toneladas de lixo doméstico e resíduos industriais, que poluem não somente o ambiente terrestre, como também as águas, sejam elas superficiais ou subterrâneas.
As técnicas avançadas da produção industrial aplicada à agricultura e mais recentemente o desenvolvimento da biotecnologia especialmente a biotecnologia de alimentos, tem produzido uma gigantesca quantidade de insumos agrícolas e agrotóxicos que causam a contaminação dos rios, lagos, solos e aqüíferos subterrâneos. Os produtos químicos aplicados à agricultura contaminam além das águas e dos solos, também os alimentos consumidos pela população trazendo prejuízos irreparáveis à saúde humana.
A emissão de gases tóxicos para a atmosfera, proveniente das indústrias, da queima dos combustíveis fósseis utilizado nos automóveis, a emissão do cloro-fluor-carbono (CFC) etc., provocou a poluição atmosférica, o que deu origem ao aparecimento do buraco na camada de ozônio, interferindo diretamente na saúde humana e das diversas espécies animais.
O fenômeno da urbanização decorrente do surgimento das cidades é um reflexo da reprodução do capital. O espaço urbano é produzido e divido seguindo as desigualdades sociais oriundas da sociedade capitalista caracterizada pela sua divisão em classes sociais, com interesses antagônicos e diametralmente opostos. Portanto a segregação sócio-espacial é uma característica do processo de urbanização produzido pelo modelo capitalista. As diferenças sociais gritantes também são produtos do modo de produção excludente da sociedade capitalista. Portanto, o desenvolvimento da sociedade capitalista não somente é responsável pela degradação ambiental, como também pela degradação política, econômica e social do ser humano.
É neste contexto que ocorre a degradação ambiental, fruto da ação antrópica, onde o impacto atinge não somente a natureza, mas também o próprio homem como ser social que deveria estar em interação com a natureza e como parte integrante dela. Portanto, a problemática da contaminação das águas deve ser enfrentada, considerando o conjunto de fatores degradantes e que é fruto da ação do próprio homem sobre a natureza, no processo perverso de desenvolvimento da sociedade capitalista.


Dentro desta lógica a problemática da educação, da produção do conhecimento científico, assumem uma dimensão gigantesca. Qualquer nação que preze pela conservação dos recursos naturais, pela defesa da qualidade de vida do seu povo e pela própria continuidade da vida no planeta deve focar sua atenção sobre uma tarefa elementar: a construção de uma educação pública e de qualidade em todos os níveis. A educação ambiental que já virou termo da moda faz parte do processo educacional da população do país. Deve estar incluída dentro deste processo e não pode ser tratada separadamente.
A gestão correta e eficiente dos recursos hídricos passa fundamentalmente pela solução dos grandes problemas que afetam a maioria da população, tendo como eixo a educação, o que leva fatalmente ao questionamento do modelo de desenvolvimento do país.

Referências Bibliográficas

-SCOMAZZON, C. Carta da Terra. Disponível em http.www.carthcharter.org/draft/charterpo.htm. Acesso em: 2 de maio 2003.

-COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO (CMMAD). Nosso futuro comum. Rio de Janeiro, Ed. Fundação Getúlio Vargas. 1991.

-ROMANO FILHO, D. Gente Cuidando das Águas. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2002.