terça-feira, 7 de abril de 2009

ENTRE CIÊNCIAS E ECOSOFIAS: notas de síntese

Por Sandra Rodrigues Braga


Boaventura de Sousa Santos (1988) recorda-nos que o campo teórico em que ainda nos movemos foi criado a partir da revolução científica do século XVI e os primeiros 20 anos do século passado, de modo que é possível dizer que, em termos científicos, o século XX ainda não começou.
Por outro lado, cada vez mais, se coloca em pauta a reflexão sobre os limites do rigor científico e seus laços com os perigos de uma catástrofe ecológica que faz temer pela continuidade do século XXI.
Em Discours sur les Sciences et les Arts, Jean Jacques Rousseau (1750), respondendo às questão “O progresso das ciências e das artes contribuirá para purificar ou para corromper os nossos costumes?”, “Há alguma razão de peso para substituirmos o conhecimento vulgar que temos da natureza e da vida e que partilhamos com os homens e mulheres da nossa sociedade pelo conhecimento científico produzido por poucos e inacessível à maioria?”, “Contribuirá a ciência para diminuir o fosso crescente na nossa sociedade entre o que se é e o que se aparenta ser, o saber dizer e o saber fazer, entre a teoria e a prática?”, a que Rousseau respondeu “não”. Mais de 250 anos depois, as perguntas de Rousseau continuam válidas e podem ser sintetizadas pela pergunta: “Qual a contribuição positiva ou negativa da ciência para a nossa felicidade?”.
A “racionalidade”, utilitária e funcional, que presidiu a ciência moderna, sob a lógica do determinismo mecanicista, vale menos pela capacidade de compreender o real do que pela capacidade de o dominar e transformar. Como diz Bacon, a ciência fará da pessoa humana “o senhor e o possuidor da natureza”.
Este modelo de racionalidade científica se distingue e se defende de duas formas de conhecimento não científico: o senso comum e as humanidades (história, filologia, direito, literatura, filosofia e teologia). No século XIX, este modelo, porém, se estende às ciências sociais emergentes, globalizando-se. A consagração da ciência moderna nos últimos 400 anos naturalizou a explicação do real, a ponto de não o concebermos senão nos termos por ela propostos (espaço, tempo, matéria e número). Por ser global, a nova racionalidade científica é também totalitária, negando o caráter racional a todas as formas de conhecimento não pautadas pelos seus princípios epistemológicos e suas regras metodológicas. É esta a característica que aparece em Discurso do Método, de Descartes, que, vai das ideias para as coisas e não das coisas para as ideias, estabelecendo a prioridade da metafísica enquanto fundamento último da ciência.
A ciência moderna desconfia das evidências da experiência imediata, que estão na base do conhecimento vulgar, provocando a total separação entre a natureza e o ser humano. A natureza é tão-só extensão e movimento; é passiva, eterna e reversível, mecanismo desmontável e relacionável sob a forma de leis. Conhecê-la é controlá-la. As ideias que presidem à experimentação são matemáticas: o rigor científico afere-se pelo rigor das medições. As qualidades intrínsecas do objeto são desqualificadas e, em seu lugar, passam a imperar as quantidades. O que não é quantificável é cientificamente irrelevante, o que reduz a complexidade do todo. Como afirma Descartes, uma das regras do Método consiste em dividir cada uma das dificuldades em tantas parcelas quanto for possível e requerido para melhor as resolver.
Um conhecimento baseado na formulação de leis pressupõe a ordem e estabilidade do mundo. A consciência filosófica da ciência moderna, que tivera no racionalismo cartesiano e no empirismo baconiano as suas primeiras formulações, veio a condensar-se no positivismo oitocentista. Como afirma Santos (1988), no plano social, esse horizonte cognitivo é o mais adequado aos interesses da burguesia ascendente.
Esta ordem científica, entretanto, vive uma crise de hegemonia, crise, tão profunda quanto irreversível. Para Santos (1988), esta crise é o resultado interativo de uma pluralidade de condições sociais e teóricas, posto que o próprio aprofundamento do conhecimento (Einstein teria sido o primeiro rombo no pilar do paradigma dominante) é o que permitiu ver a fragilidade dos pilares em que se fundava.
Torna-se claro que a totalidade do real não se reduz à soma das partes em que a dividimos para observar e medir, ao mesmo tempo em que a distinção sujeito/objeto perde os seus contornos dicotômicos e assume a forma de um continuum. Por outro lado, se as leis da natureza fundamentam o seu rigor na matemática, as investigações de Gödel demonstram que esse rigor carece ele próprio de fundamento e reconhecem que, como qualquer outra forma de rigor, assenta num critério de seletividade.
A teoria de Prigogine recupera os conceitos aristotélicos de potencialidade e virtualidade que a revolução científica do século XVI atirou ao lixo da história. São questionados os conceitos de lei e causalidade: assume-se que as leis têm um caráter probabilístico, aproximativo e provisório, ao passo que o conceito de causa se adéqua bem a uma ciência que visa a intervir no real e que mede o seu êxito pela intervenção.
Na ciência emergente, o conhecimento só se realiza enquanto tal na medida em que se converte em senso comum e que se sustenta que “todo o conhecimento científico-natural é científico-social”. De fato, a distinção dicotômica entre ciências naturais e sociais começa a deixar de ter sentido e utilidade. Os avanços recentes da física e da biologia põem em causa a distinção entre o orgânico e o inorgânico, entre seres vivos e matéria inerte e mesmo entre o humano e o não-humano. As características da autoorganização, do metabolismo e da autorreprodução, antes consideradas específicas dos seres vivos, são hoje atribuídas aos sistemas pré-celulares de moléculas.
Para Santos (1988), “todo o conhecimento é local e total”. Se o conhecimento avançou pela especialização, hoje se reconhecem os males desta parcelização do conhecimento e do reducionismo arbitrário que transporta consigo. Mesmo sendo local, o conhecimento emergente é também total, reconstituindo os projetos cognitivos locais, salientando a sua exemplaridade e transformando-os em pensamento total ilustrado. A ciência do paradigma emergente, sendo analógica, incentiva os conceitos e as teorias desenvolvidos localmente a emigrarem para outros lugares cognitivos, de modo a serem utilizados fora do seu contexto de origem. O conhecimento pós-moderno, sendo total, não é determinístico e, sendo local, não é descritivista. É um conhecimento sobre as condições de possibilidade.
Ao mesmo tempo, afirma Santos (1988), “todo o conhecimento é autoconhecimento”, já que a ciência não descobre, cria, e o ato criativo é protagonizado por cada cientista e pela comunidade científica. O privilegiamento de uma forma de conhecimento assente na previsão e no controle dos fenômenos nada tem de científico, é juízo de valor, autojustificação da ciência enquanto fenômeno central da contemporaneidade. A ciência é, assim, autobiográfica, característica que, no paradigma emergente, é plenamente assumida, já que “todo o conhecimento é autoconhecimento”.
No paradigma emergente, “todo o conhecimento científico visa constituir-se num novo senso comum”. O senso comum, prático e pragmático; reproduz-se colado às experiências de vida de dado grupo social e, assim, se afirma confiável. O senso comum desconfia da opacidade dos objetivos tecnológicos porque desdenha das estruturas que estão para além da consciência. Indisciplinar e ametódico, o senso comum aceita o que existe tal como existe; não ensina, persuade.
Como afirma Santos (1988), duvidamos suficientemente do passado para imaginarmos o futuro, mas vivemos demasiadamente o presente para realizarmos nele o futuro. Se a ciência moderna legou-nos um conhecimento funcional do mundo que alargou as nossas perspectivas de sobrevivência, é certo que as intensas transformações técnico-científicas tiveram como contrapartida desequilíbrios ecológicos que ameaçam a vida no planeta. A crise do paradigma científico dominante colocou em pauta os perigos mais evidentes que ameaçam o meio ambiente natural de nossas sociedades.
Félix Guattari (1990) critica a ecologia ambiental, por se contentar em abordar apenas danos industriais, numa perspectiva tecnocrática. O autor defende uma ecologia generalizada que terá por finalidade descentrar radicalmente as lutas sociais e as maneiras de assumir a própria psique, uma articulação ético-política, que denomina ecosofia, e que transita entre três registros ecológicos: o do meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade humana.
Alguns estudos, como o de Michel Serres (1991), propõem a retomada do contrato natural, entendido como uma nova ética que elimine o estado de guerra contra a Natureza, ou a do contrato animal, que se atém ao fato de que cada espécie deve limitar seu crescimento populacional o suficiente para permitir que outras formas de vida coexistam com ela.
O que está em questão é a maneira de viver daqui em diante neste planeta. Para Guattari (1990), não haverá verdadeira resposta à crise ecológica a não ser em escala planetária e desde que se opere uma autêntica revolução política, social e cultural reorientando os objetivos da produção de bens materiais e imateriais. Essa revolução é concernente, não só às relações de forcas visíveis em grande escala, mas também aos domínios moleculares de sensibilidade, de inteligência e de desejo. O trabalho social, regulado por uma economia de lucro e por relações de poder, levou-nos a dramáticos impasses, o que se manifesta nas tutelas econômicas que pesam sobre o Terceiro Mundo. A instauração de imensas zonas de miséria, fome e morte integra o monstruoso sistema de "estimulação" do Capitalismo Mundial Integrado e dá origem às novas problemáticas ecológicas.
As relações da humanidade com o socius, a psique e a "natureza" tendem a se deteriorar cada vez mais, não só em razão de nocividades e poluições objetivas, mas pelo desconhecimento e passividade fatalista dos indivíduos e dos poderes com relação a essas questões em seu conjunto. Catastróficas ou não, as evoluções negativas são aceitas tais como são. Uma responsabilidade e uma gestão mais coletiva se impõem para orientar as ciências e as técnicas em direção a finalidades mais humanas.
Guattari (1990), porém, não pretende um retorno ao trabalho, já que jamais o trabalho humano ou o habitat voltarão a ser o que eram antes das revoluções informáticas, robóticas, genéticas e depois da mundialização dos mercados. A aceleração das velocidades de transporte e de comunicação, a interdependência dos centros urbanos são irreversíveis e temos que admitir que será preciso lidar com esse estado de fato, o que demanda uma recomposição dos objetivos e dos métodos.
As três ecologias se desprendam dos paradigmas pseudocientíficos, implicando uma lógica diferente: enquanto a lógica discursiva limita muito bem seus objetos, a lógica das intensidades, ou a eco-lógica, leva em conta apenas o movimento, a intensidade dos processos evolutivos. Ao sistema, o filósofo contrapõe o processo, o “se por a ser” que diz respeito apenas a certos subconjuntos expressivos que romperam com seus encaixes totalizantes e se puseram a trabalhar por conta própria. Também encontra a eco-lógica operando na vida cotidiana, nos diversos patamares da vida social e na constituição de territórios existenciais.
A ecologia social deve trabalhar na reconstrução das relações humanas em todos os níveis do socius, não perdendo de vista que o poder capitalista se deslocou, se desterritorializou, em extensão - ampliando seu domínio sobre a vida social, econômica e cultural do planeta - e em “intenção” - infiltrando-se no seio dos mais inconscientes estratos subjetivos. Assim, não é possível se opor a ele apenas de fora, por meio de práticas sindicais e políticas tradicionais, mas deve-se encarar seus efeitos no domínio da ecologia mental, da vida cotidiana individual, doméstica, conjugal, de vizinhança, de criação e ética pessoal. A questão, no futuro, será a do cultivo do dissenso e a produção singular de existência.
A eco-lógica não mais impõe “resolver” os contrários, como queriam as dialéticas hegelianas e marxistas. Uma imensa reconstrução das engrenagens sociais é necessária para fazer face aos destroços do capitalismo mundial. Essa reconstrução passa menos por reformas de cúpula, leis e programas burocráticos do que pela promoção de práticas inovadoras, pela disseminação de experiências alternativas, centradas no respeito à singularidade e na produção de subjetividades que vai se articulando ao resto da sociedade. Para além de uma renda mínima garantida para todos - reconhecida como direito -, meios de levar avante empreendimentos individuais e coletivos, no sentido de uma ecologia da ressingularização.
O princípio da ecologia ambiental é o de que tudo é possível tanto as piores catástrofes quanto as evoluções flexíveis. Cada vez mais, os equilíbrios naturais dependerão das intervenções humanas. Um tempo virá em que a aceleração dos “progressos” técnico-científicos, conjugada ao enorme crescimento demográfico, desencadeará uma corrida para dominar a mecanosfera.
Fazer emergir outros mundos dos da pura informação abstrata; engendrar universos de referência e territórios existenciais, em que a singularidade e a finitude sejam levadas em conta pela lógica multivalente das ecologias mentais e pelo princípio da ecologia social, tais são as vias embaralhadas da tripla visão ecológica. Uma ecosofia, ao mesmo tempo prática e especulativa, ético-política e estética, deve, segundo Guattari (1990), substituir as antigas formas de engajamento religioso, político e associativo.
No mínimo por corrermos o risco de não mais haver história se a humanidade não se reassumir radicalmente, trata-se de conjurar o crescimento entrópico da subjetividade dominante, de se reencontrar consistência em novas práticas sociais, estéticas, na relação com o outro, com o estrangeiro e o estranho. Na articulação da subjetividade nascente, do socius mutante, do meio em ponto de reinvenção, está a saída da crise. Concluindo, Guattari (1990) afirma que as três ecologias deveriam ser concebidas como sendo da alçada de uma disciplina comum ético-estética e, ao mesmo tempo, como distintas uma das outras do ponto de vista das praticas que as caracterizam, sendo seus registros da alçada do processo contínuo de ressingularização.
Como afirma Santos (1988), sabemo-nos a caminho mas não exatamente onde estamos na jornada, já que, se todo o conhecimento é autoconhecimento, todo o desconhecimento é autodesconhecimento.

REFERÊNCIAS

GUATTARI, Félix. As três ecologias. Tradução de Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas: Papirus,1990.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós-moderna. Estudos Avançados, São Paulo, v. 2, n. 2, maio/ago.1988.

Nenhum comentário:

Postar um comentário