sábado, 30 de maio de 2009

BIOPIRATARIA: O Tráfico Internacional da Biodiversidade Brasileira


Por Valter Machado da Fonseca
e Carmem Lúcia Ferreira

Foto: Governo do Pará

O termo biopirataria é aparentemente novo, apesar do tráfico do patrimônio florístico brasileiro, constituir-se numa prática que remonta à época do descobrimento do Brasil, há 500 anos atrás. Esta prática teve início através da exploração do nosso pau Brasil, que era levado para a Europa pelos portugueses para fabricação de tintas e corantes.A Exploração desordenada da madeira brasileira inaugurou um período de “rapinagem” dos recursos florísticos de um dos mais ricos biomas do país: a mata atlântica. Hoje este bioma está praticamente, extinto restando apenas manchas da vegetação original (cerca de 10%).


A riqueza dos recursos naturais do país vem despertando a cobiça dos povos de todas as partes do mundo, o que vem impulsionando o tráfico do patrimônio florístico e faunístico do Brasil, a biopirataria.Podemos afirmar que a biopirataria, além de realizar a pilhagem de nossa biodiversidade, também se apropria da cultura e dos saberes das comunidades que habitam os biomas brasileiros desde antes do “descobrimento” do país.Este artigo tratará da importante temática a respeito da riqueza dos recursos naturais brasileiros. Ironicamente, este tema, de fundamental relevância, é muito mais conhecido na comunidade científica internacional do que nas próprias universidades brasileiras.


A comunidade científica internacional investe em proporções inúmeras vezes maiores, em estudos dos nossos biomas, dos nossos potenciais florístico, faunístico, dos nossos minerais e minérios, dos nossos recursos hídricos, enfim, no estudo de todas as fontes dos nossos recursos naturais, do que as universidades e centros de pesquisas do Brasil.

A “lógica” da biopirataria é herança do pensamento positivista, o qual forjou todo o processo da revolução industrial, portanto, é preciso voltar a ele para compreender a trama que envolve a apropriação ilegal do nosso patrimônio genético.A exploração desordenada e descontrolada de nossos recursos naturais é uma característica marcante do modo de produção capitalista, o qual reflete a lógica do pensamento positivista, predominante, principalmente, entre os filósofos ingleses e franceses do século XVIII. Esta forma de pensamento exclui o ser humano do conjunto das forças que mantém o equilíbrio do grande ecossistema planetário, situando-o num patamar privilegiado, acima dos elementos que compõem a natureza e não como parte integrante dela.


Portanto, foi a partir da “lógica” deste pensamento, que se deu o processo de aceleração da degradação ambiental, desde a revolução industrial, em fins do século XVIII, na Inglaterra. Desta forma a problemática ambiental é herdeira direta da concepção de que o homem, por ser capaz de raciocinar, adquirir, produzir e organizar conhecimentos, está acima da natureza e das leis que regem o planeta e o mantém em equilíbrio.


As considerações elencadas acima, são necessárias para se obter um entendimento correto do potencial da biodiversidade brasileira, da exploração desordenada de nossos recursos naturais e do enorme interesse da comunidade científica internacional em desvendar o potencial genético desta biodiversidade. Para isso, investem pesado em projetos de estudos e pesquisas dos biomas brasileiros, a exemplo do cerrado (o que resta dele), da floresta amazônica, da caatinga, do pantanal, da mata atlântica (o que resta dela), dos campos e pradarias e dos manguezais, etc.Para ilustrar este ensaio, far-se-á uma referência ao potencial da Amazônia, um exemplo clássico, por tratar-se do nosso maior e mais rico bioma.


O Brasil é um país privilegiado, pois, possui 12% da água potável do planeta, a maior floresta tropical do globo (Amazônia), as maiores fontes de energia da face da terra (grande quantidade de energia solar por se situar-se na região intertropical), um enorme potencial hidrelétrico e um dos maiores potenciais em patrimônio genético do mundo.Segundo dados dos centros de pesquisas internacionais, a Amazônia brasileira, que ocupa 5.217.042 km,² cerca de 61% do território nacional, é o grande atrativo em uma época em que a biotecnologia agrega valor à biodiversidade. O valor dos serviços de ecossistemas e capital natural representa 33 trilhões de dólares atuais, quase duas vezes o produto interno bruto (PIB) mundial. No Brasil, estima-se que este valor atinja 45% do PIB, considerando-se somente a atividade agroindustrial, a extração de madeira e pesca. A Amazônia possui 30% de todas as seqüências de DNA que a natureza combinou em nosso planeta, um estoque genético que representa fonte natural de produtos farmacêuticos, bioquímicos e agronômicos. Estima-se que existam de 5 a 30 milhões de espécies na Amazônia, estando apenas 1,4 milhões dessas catalogadas: 750 mil espécies de insetos, 40 mil de vertebrados, 250 mil espécies diferentes de árvores/hectare, 1400 tipos de peixes, 1300 espécies de pássaros e mais de 300 espécies de mamíferos diferentes. Só no Brasil, há 2,8 mil espécies de madeiras distribuídas em 870 gêneros e 129 diferentes famílias botânicas que representam, aproximadamente, 1/3 das florestas tropicais do mundo, uma reserva estimada em 1,7 trilhões de dólares somente em madeira de lei. Isto sem considerar o patrimônio genético e a biodiversidade dos demais biomas brasileiros como o cerrado, pantanal, a caatinga, a mata atlântica, os manguezais e os campos, o que deve somar mais um punhado de trilhões de dólares, além do valor incalculável das fontes energéticas e dos recursos minerais (minérios, metais, pedras preciosas e semi-preciosas, etc.) brasileiros.


É todo esse patrimônio genético e essa gama de biodiversidade que estão em disputa, o que, fatalmente, geram conflitos. Não é por mero acaso que os EUA instalaram 16 bases militares em torno da Amazônia, justamente nos pontos de maior concentração de patrimônio genético e/ou recursos minerais. É a estratégia norte-americana para a exploração de nossos recursos naturais, após ser legitimada com a implementação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA).


Há que se considerar, ainda, os conflitos que marcam a sociedade capitalista contemporânea, como as crises em torno da disputa pelo uso dos combustíveis fósseis (petróleo, gás natural, carvão mineral, etc.) e até mesmo a disputa pela água potável do planeta. A população, as comunidades científicas e os centros de pesquisas brasileiros desprezam, conscientemente ou inconscientemente, a imensa riqueza que o país possui em recursos naturais.Os tempos modernos são marcados, fundamentalmente, pelo avanço espetacular da tecnologia de ponta, principalmente no que se refere ao desenvolvimento extraordinário das telecomunicações, dos transportes e da informática: a terceira revolução tecnológica.


Paralelamente a ela, a biotecnologia surge como um fato inovador, graças ao domínio do homem sobre os conhecimentos da engenharia genética, o que resultou em experimentos que tiveram como conseqüência o deciframento do DNA, através da leitura científica completa do código genético. Acontecimentos, que há poucas décadas eram considerados cenas de ficção científica, a exemplo da clonagem de indivíduos, tecidos e órgãos animais e/ou vegetais e até mesmo do próprio homem, a partir de células-tronco, hoje já são uma realidade. A biotecnologia, em especial aquela aplicada à agricultura (a exemplo da transgenia, do melhoramento genético de sementes e espécies vegetais) vem interferindo na vida das espécies animais e vegetais, o que tem colocado em risco o equilíbrio dos ecossistemas, a sobrevivência das espécies, dentre elas o próprio homem. Tudo isso, para manter um dos principais pilares de sustentação do capitalismo contemporâneo: a agroindústria e o agronegócio.


A biotecnologia aplicada à agricultura ou biotecnologia de alimentos busca sua matéria prima no patrimônio genético da flora e da fauna, do mesmo modo que procedem as indústrias farmacêutica, bioquímica e agronômica. Diante disso, o potencial florístico/faunístico brasileiro é riquíssimo e, portanto, um dos principais focos de atenção das corporações transnacionais e multinacionais pertencentes às grandes potências capitalistas mundiais.


É neste contexto, que se situa a biopirataria. A indústria da biopirataria é formada por uma rede internacional de traficantes, que roubam nossa madeira, surrupiam nossas plantas medicinais e nossa fauna ao mesmo tempo em que se apropriam dos conhecimentos e saberes das comunidades dos povos da floresta. Esta contravenção causa devastação das florestas, quebrando o equilíbrio dos ecossistemas e colocando em risco todas as comunidades dos seres vivos. Como exemplo, podemos citar uma espécie vegetal de fundo de quintal (nome popular: quebra pedras), cujo uso terapêutico para problemas urinários já está patenteado nos EUA e, o nosso famoso cupuaçu, cuja patente de uso já pertence ao Japão. Estes são apenas dois exemplos entre centenas (ou mais), uma vez que não é possível estimar valores e quantidades, pois, a biopirataria é uma atividade clandestina do tráfico internacional.


Além de tudo isso, a biopirataria atua como agente de ruptura da cadeia alimentar, provocando a erosão genética, impedindo a continuidade do processo evolutivo da vida no planeta, através da inserção de espécies modificadas geneticamente no meio natural, causando também contaminação das águas e dos solos e ocasionando impactos comparados aos da “revolução verde” da década de 1970.


O chamado desenvolvimento sustentável, conceito que ganhou projeção a partir da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente (CNUMAD), realizada no Rio de Janeiro em 1992 como “aquele que atende as necessidades do presente sem comprometer a possibilidade das futuras gerações de atenderam suas próprias necessidades” é polêmico e carregado de economicismo e antropocentrismo, uma vez que coloca como a principal função da natureza o atendimento material do ser humano, no presente e nas futuras gerações.


Por fim, este ensaio, diante de tudo que foi exposto, conclui que faz-se necessário a introdução deste importante eixo temático nas escolas, junto à população, às entidades da sociedade civil organizada, enfim, junto à sociedade em geral no sentido de mobilização de amplos setores da população para efetivar soluções que visem garantir o combate efetivo à biopirataria, visando preservar o patrimônio genético e os recursos naturais brasileiros, como uma das formas de garantir a continuidade da vida no planeta. Isto leva, fatalmente, ao questionamento do atual modelo de desenvolvimento econômico do país.


Os elementos apontados e destacados neste texto abrem o grande desafio de direcionar o desenvolvimento técnico-científico para a solução dos grandes e graves problemas que assolam a humanidade.Caso contrário, várias espécies estarão, indubitavelmente, sujeitas à extinção e dentre elas, o homo sapiens. A luta é para que a ciência avance de uma tecnocracia que domina o homem, para uma tecnologia a serviço da humanidade.

MEIO AMBIENTE E SUSTENTABILIDADE DA VIDA

Por Maria dos Anjos P. Rodrigues*

1. APRESENTAÇÃO

A opção econômica, de desenvolver e crescer a qualquer custo vem deixando suas marcas incontestáveis no meio ambiente, tudo isto refletido na qualidade de vida da população e projetando desde a infância a relação espacial que deve configurar a relação homem com o meio ambiente.
A humanidade, em sua busca incansável, por condições melhores de vida, e com o aprimoramento de suas técnicas de apropriação dos recursos naturais, vem deixando um grande histórico de devastação e destruição da natureza.
Este histórico vem imprimindo consequências nefastas para vida planetária, às quais, já estamos sentido seus efeitos, caracterizando assim, espaços degradados e, em alguns casos, devastação total do espaço natural, como: degradação dos córregos, assoreamento dos rios, poluição do ar, destruição das florestas pelas queimadas, e muitos outros, que atestam como o homem se distanciou da natureza, para incorporar um novo mito “O Capital”.
Com o mito do “Capital”, que ainda impera na sociedade moderna e com o Lema: “Desenvolver” a qualquer custo, que foi o carro chefe nas tomadas de decisões dos governantes mundiais e brasileiros, por muitos séculos. Tendo estas premissas como paradigmas, na década de 1970 e início da década de 1980, as experiências de administrações públicas preocupadas com planejamentos direcionados à gestão ambiental, eram raras.
Mas, diante do despertar ecológico e consequentemente, com a resposta da natureza devido a séculos de exploração desordenada, tem-se, agora, configurando no contexto mundial, em novos paradigmas de desenvolvimento e proteção ambiental, fazendo parte das propostas e projetos das empresas privadas, poderes públicos e propostas em educação ambiental em todos os níveis.
Na perspectiva por mudanças, um grupo de cientistas, e organizações sociais, como resultados de discussões elaborou o relatório de Brundtland – Nosso Futuro Comum (ONU,1987), que coloca como alternativa uma nova visão de desenvolvimento:
“O Desenvolvimento Sustentável é aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade das gerações futuras de atenderem as suas próprias necessidades.”
Este conceito é afirmado na ECO-92, onde foi construída a “A Agenda 21” que consolidou a idéia de que o desenvolvimento e a conservação do meio ambiente devem constituir um binômio indissolúvel, que promova a ruptura do antigo padrão de crescimento econômico, tornando compatíveis duas grandes aspirações deste século: o direito ao desenvolvimento, sobretudo para os países que permanecem em patamares insatisfatórios de renda e de riqueza, e o direito ao usufruto, da vida em ambiente saudável para as futuras gerações.
O conceito de desenvolvimento sustentável surge nesta busca por respostas de novos paradigmas, novas formas de ver o mundo um novo diferencial socioeconômico, acrescentando a isto mais um desafio: a preservação ambiental, pois, favorecendo a sustentabilidade do planeta, consequentemente proporcionará a preservação da vida.
Num primeiro momento, sem um olhar crítico mais atento, resume-se que o desenvolvimento sustentável é uma mera preocupação com o “verde”. Mas, para de fato haver uma relação de desenvolvimento econômico e proteção ao meio ambiente, tem que se pensar em colocar em prática uma sustentabilidade ampla que vise os anseios desta sociedade em todos os seus aspectos econômicos, culturais, sócio-ambientais e outros.
É necessário concretizar de fato, uma relação entre desenvolvimento econômico com a proteção ao meio ambiente, e colocar em xeque os valores desta sociedade e governos em suas tomadas de decisões. Um outro mundo é possível e só será possível, se vivenciarmos novas atitudes, valores na construção de uma rede que integrem e gerem, de fato, a vida. É no âmbito local, que o cenário de mudanças tem que iniciar.
Sendo assim, há que se questionar, a todo o momento, com que ações contribuímos na construção, de fato, de um ambiente melhor para se viver, enfim, de um mundo novo.
Portanto, devemos olhar o meio que nos cerca de forma diferenciada, pois, somos parte deste todo.

2. O DESAFIO DA CONSTRUÇÃO DA SUSTENTABILIDADE DA VIDA

Quando se fala em meio ambiente, nas problemáticas ambientais que nos cercam, logo vem à mente, um aspecto, ou seja, fatos como: a destruição das florestas, a poluição dos rios, lagos e oceanos, a poluição do ar, e outros.
Raramente, pensa-se no planeta Terra como um todo e todos estes fatores se interrelacionam e formam a grane rede da vida.
Os gregos na antiguidade falavam que o planeta deriva do conjunto de elementos essências sendo eles “A Litosfera, A Hidrosfera e Atmosfera (a terra, água e ar), e a harmonia destes gerava e sustentava a vida.
Na Grécia tem-se o mito de “Gaia”, referenciando a deusa Terra.
O cientista inglês James Lovelock, fez pesquisas lançando fundamentos científicos a este mito, onde elaborou o conceito de a “Hipótese de Gaia”. Os pesquisadores descobriram que a biosfera da Terra, que é a interrelação de todos os elementos: sistema único e complexo como um organismo, que precisa da inter-relação e qualidades destes elementos para manter e sustentar a vida planetária ou a vida no planeta.
Todas as formas de vida, cada um de nós fazemos parte deste organismo, somos integrantes deste Universo, que a compõe “Litosfera-Atmosfera e Hidrosfera”, as quais constituem um todo.

Neste sentido, o homem não é melhor ou pior que qualquer outra espécie, mas um componente fundamental desta rede, criado por ela, mantido por ela, influenciado por ela e tendo o poder de influenciá-la (tanto positiva quanto negativamente) tanto quanto é influenciado por ela, Aliás, somos meros nódulos da rede da vida, juntamente com todas as outras espécies vivas. (CAPRA apud ROMANO, 2002:30)

O homem tinha esta concepção do todo, pois, vivia em harmonia com a mãe natureza, os impactos que ocorriam naquele período por causa da interferência que sempre houve. A natureza conseguia se recuperar da exploração. Não se compara aos níveis que foram atingidos a partir da Revolução Industrial.
Em 1917, o pensador inglês Bertrand Russell, já fazia um alerta, da degradação ambiental que via ocorrendo.

No ritmo com que estão sendo explorados, os trigais, minas e florestas do planeta estarão exauridos em uma data não muito distante. No campo da produção material, o mundo está vivendo depressa demais; numa espécie de delírio, quase toda a energia do mundo tem sido lançada na produção imediata de alguma coisa, não importa o quê nem a que custo. E ainda se defende o nosso sistema atual sob o argumento de que ele assegura o progresso! (RUSSELL, 2001:30)

Percebe-se que as constatações de RUSSELL, não são palavras “escritas ao vento”, é uma verdade que se concretiza na sociedade moderna, e com a mesma determinação faz-se urgente pensar e agir de forma diferente em relação aos recursos naturais.
As problemáticas ambientais, que estão configurados no século XXI, não permitem a imobilidade, mas sim a ação.

A problemática ambiental gerou mudanças globais em sistemas socioambientais complexos que afetam as condições de sustentabilidade do planeta, propondo a necessidade de internalizar as bases ecológicas e os princípios jurídicos e sociais para a gestão democrática dos recursos naturais. Estes processos estão intimamente vinculados ao conhecimento das relações sociedade-natureza: não só estão associados a novos valores, mas a princípios epistemológicos e estratégias conceituais que orientam a construção de uma racionalidade produtiva sobre bases de sustentabilidade ecológica e de equidade social. Desta forma, a crise ambiental problematiza os paradigmas estabelecidos do conhecimento e demanda novas metodologias capazes de orientar um processo de reconstrução do saber que permita realizar uma análise integrada da realidade. (LEFF, 2002:59-60)

O todo e as partes as partes e o todo, estão em simbiose constante de tudo que nos cercam, instiga a reinventar o nosso cotidiano sobres novas bases, principalmente de valores que respeitam a vida.

Não haverá verdadeira resposta à crise ecológica a não ser em escala planetária e com a condição de que se opere uma autêntica revolução política, social e cultural reorientando os objetivos da produção de bens materiais e imateriais. Essa revolução deverá concernir, portanto, não só às relações de forças visíveis em grande escala mais também aos domínios moleculares de sensibilidade, de inteligência e de desejo. Uma finalidade do trabalho social regulada. De maneira unívoca por uma economia de lucro por relações de poder só pode, no momento, levar a dramáticos impasses – o que fica manifesto no absurdo das tutelas econômicas que pesam sobre o terceiro mundo. (GUATTARI, 2001:08-09)

Neste espectro que toda a sociedade devia caminhar para mudar o panorama de destruição das condições de vida do planeta, mas em pleno século XXI, percebe-se que se tem muito a caminhar.

3. REFERÊNCIAS

ARDUINI, J. Antropologia: ousar para reinventar a humanidade. São Paulo: Paulus, 2002.

BARBIERI, J.C., Desenvolvimento e meio ambiente: as estratégias de mudanças da agenda 21. 4º ed. Petrópolis- RJ: Vozes, 1997

BERNA. V. Como fazer Educação Ambiental. São Paulo: Paulus, 2001

CALDAS, S. T., Lições de Natureza, Os Caminhos da Terra, São Paulo: ano 09, nº 04, edição 96, p.28-35, abril. 2000.

EVASO. A S. et al. Desenvolvimento sustentável: mito ou realidade? Terra Livre. São Paulo, nº 11-12, p. 91-100, 1996.

GUATTARI, Félix. As três ecologias. 16Ed, Trad. Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas, SP: Papirus, 1990.

GONÇALVES, Carlos Walter Porto. Geografia Política e Desenvolvimento Sustentável. Terra Livre, São Paulo, nº 11-12, p. 7-90, 1996.

LEFF. Enrique. Epistemologia Ambiental. 3 Ed,Trad. Sandra Valenzuela, São Paulo: Cortez,2002

ROMANO Filho. Desmostens (org.). Gente cuidando das águas. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2002

RUSSEL, Bertrand, Ideais políticos. Trad. Pedro Jorgensen Jr., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001
* Licenciada em Geografia pela FEU/UFU, Pós-Graduação em Planejamento e Gestão de Recursos Hídricos - UNIPAC, Pós-Graduação em Educação Ambiental pelo IESDE, Professora da Rede Pública Municipal de Uberaba/MG. E-MAIL: del.anjos@bol.com.br

sexta-feira, 29 de maio de 2009

TRIÂNGULO MINEIRO: A onda “amarga” da monocultura da cana-de-açúcar invade o cerrado.


Por Valter Machado da Fonseca

Foto: Corte manual da cana-de-açúcar

Depois da soja, assiste-se à ofensiva impiedosa da monocultura da cana-de-açúcar invadir o cerrado brasileiro (ou as manchas que ainda restam dele). No Triângulo Mineiro, em particular, esta invasão tem assumido proporções gigantescas. Assiste-se, agora acompanhada da tecnologia de última geração, ao retorno da monocultura que marcou o início do processo de colonização do Brasil. O discurso em defesa desta monocultura traz em suas entrelinhas argumentos que tentam apagar da memória do povo brasileiro, as marcas de um período, não tão distante, de degradação ambiental, de torturas, de escravidão e de exploração dos negros e indígenas desta terra, ainda majestosa.
É importante, aqui, destacar um trecho de Francisco Graziano Neto:

Sobre a devastação ocorrida com o ciclo da cana-de-açúcar no Nordeste, desde o século XVI, assim se manifesta Galeano, baseando-se em Josué de Castro: “O açúcar arrasou o Nordeste. A faixa úmida do litoral, bem regada por chuvas, tinha um solo de grande fertilidade, muito rico em húmus e sais minerais, coberto por matas tropicais da Bahia até o Ceará. Esta região de matas tropicais converteu-se, como diz Josué de Castro, em região de savanas. Naturalmente nascida para produzir alimentos, passou a ser uma região de fome. Onde tudo germinava com exuberante vigor, o latifúndio açucareiro, destrutivo e avassalador, deixou rochas estéreis, solos lavados, terras erodidas [...]. Os incêndios que abriam terras aos canaviais devastaram a floresta e com ela a fauna; desapareceram os cervos, os javalis, as toupeiras, os coelhos, as pacas e os tatus. O tapete vegetal, a flora e a fauna sacrificadas, nos altares da monocultura, à cana-de-açúcar. A produção extensiva esgotou rapidamente o solo”. (GRAZIANO NETO, 1986, p.94)

O trecho extraído da obra de Graziano Neto refere-se à formulação de Josué de Castro, um dos maiores especialistas e estudiosos, acerca da temática da seca do Nordeste. “Geografia da Fome”, talvez tenha sido a obra de Castro que mais se aprofunda nos estudos das desigualdades sociais que marcam as regiões brasileiras, principalmente o Nordeste do Brasil.
Este pequeno fragmento de texto, contido na obra de Graziano Neto, expressa com muita propriedade os danos causados ao solo por este tipo de monocultura. Na época do Brasil Colônia, a preocupação com a preservação dos solos era pequena, justamente pela abundância de terras virgens; quando uma área ficava comprometida, era simplesmente abandonada e se partia para a predação de outras áreas. Quantas vezes já se presenciaram a prosa entre antigos agricultores, quando da derrubada das matas para novos plantios: “Terras cheias de vida, gordas”, diziam. Sobre essas terras “cheias de vida”, pouco se pode dizer, nos dias atuais. Elas se transformaram em simples substrato de sustentação de plantas e que exigem técnicas artificiais e cada vez maiores quantidades de agrotóxicos, para produzirem.
A prática da monocultura deixa o solo totalmente exposto. O sintoma mais aparente e conhecido da degradação dos solos agrícolas é a erosão. Ela não é um fenômeno natural, embora a intensidade das chuvas e a declividade do terreno possam influir sobre sua ocorrência. Sua origem verdadeira é a infiltração deficiente da água no solo, por alterações ou perda de sua bioestrutura e/ou por um manejo incorreto. É interessante notar que nas matas ou nos campos naturais (o que restam deles), não há perda de solos, mesmo após os mais violentos temporais. As águas dos rios de floresta são sempre límpidas.
O discurso em favor da monocultura da cana-de-açúcar se embasa na criação de novos empregos (diretos e indiretos), maiores salários, bem-estar para as famílias pobres (leia-se miseráveis), além de gerar divisas para o país e propiciar a produção do álcool, como forma de energia limpa e barata (?).
Ora, o que a mídia tem destacado ao longo dos anos é exatamente o contrário. Páginas inteiras de jornais, matérias inteiras no rádio e na TV, têm vinculado as práticas da monocultura da cana à exploração da mão-de-obra infantil, a torturas e prostituição infantil nos canaviais, a trabalhos escravos e semi-escravos e, até à morte de trabalhadores rurais ligados a esta atividade. Recentemente, a Rede Globo de Televisão exibiu no “Fantástico” (horário nobre), uma série de reportagens onde mostrava estes aspectos em várias regiões do país. Destacou entrevistas com usineiros da Região Sudeste, os quais se vangloriavam que os cortadores de cana do Sudeste conseguiam um salário de até R$800, 00, enquanto no Nordeste ganhavam metade deste valor. Só que estes senhores se “esqueceram” de dizer que para ganhar este salário, cada trabalhador tem que cumprir uma jornada de trabalho de até 12 (doze) horas por dia, cerca de 15 Toneladas de cana cortada/trabalhador/dia, sem direito a descanso semanal. A TV Globo mostrou vários casos de trabalhadores (cortadores de cana) que morreram por fadiga e/ou por estafa objetivando perseguir este “exorbitante” salário.
Quanto à forma de energia limpa, deve-se questionar: quantas toneladas de agrotóxicos são despejadas nos canaviais? Quantas centenas de milhares de hectares de cerrado e quantos milhões de toneladas de biomassa são destruídas para produzir esta “energia limpa”? Quantas espécies de plantas e animais são extintos com este tipo de monocultura? E a energia barata, onde está? Com certeza, vai para garantir os lucros, cada vez mais exorbitantes, dos usineiros. E sobre estes (os usineiros), o que se pode dizer? São as mesmas famílias, gerações advindas da centenária oligarquia rural nordestina. São os mesmos que até os dias atuais mantêm seus currais eleitorais, por intermédio da famigerada “indústria da seca”. São os mesmos ligados às atividades do garimpo clandestino, os mesmos que, ainda mantêm vivos os resquícios do feudalismo no país, os mesmos ligados à “grilagem” de terras no Norte e Centro Oeste do Brasil, ligados a assassinatos de centenas de trabalhadores rurais e dezenas de suas lideranças. São a estes fatos e a esses “senhores de escravos” (hoje escravidão dissimulada e legalizada), que se liga a monocultura da cana-de-açúcar no país.
No Triângulo Mineiro, em particular, esta prática se propaga como rastilho de pólvora. Quando se passa nas rodovias da meso-região do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, já não se vê mais o cerrado, pelo contrário, se vêem centenas de milhares de hectares do extinto cerrado, ocupado pelo plantio da cana. A monocultura que se alastrou, nos dias atuais, através da soja, agora começa a perder espaço para a cana-de-açúcar.
Os pequenos produtores rurais, não conseguindo acompanhar a tecnologia agroindustrial que invade o campo e/ou não conseguindo arcar com os preços impostos pelos oligopólios de insumos e equipamentos agrícolas, se vêem obrigados a arrendar suas terras (por 30, 40 ou 50 anos) para os usineiros. Estes despejam milhares de toneladas de agrotóxicos e insumos para aumentarem a produção e, ao cabo de, aproximadamente, 30 anos tornam as terras estéreis. Aí, devolvem-nas para os pequenos produtores. Arrendam terras produtivas e devolvem “pedaços de deserto”. Toda essa prática tem sido feita, sem nenhum Estudo de Impactos Sócio-Ambientais.
A monocultura da cana tem extinguido espécies endêmicas (da fauna: diversas espécies animais, desde mamíferos, répteis, aves até roedores e flora: árvores frutíferas, flores e espécies de madeiras) do cerrado, exterminando, assim, as atividades das famílias coletoras e das que viviam da agricultura de subsistência. Tudo para dar lugar à especulação da monocultura, para atender as demandas dos países chamados de “primeiro mundo”. Em nome desta monocultura os grandes conglomerados sucro-alcooleiros se sentem no direito de remover a vegetação nativa do bioma cerrado, destruir nascentes dos rios e riachos, além de destruir as matas ciliares, que protegem as margens dos mananciais. No município de Delta (Triângulo Mineiro – MG), e até mesmo em Uberaba (MG), existem plantações de cana-de-açúcar a cinco metros das margens do Rio Grande, um dos principais rios do país.
A prática da monocultura da cana, como já foi comprovada, causa a perda de água do solo, modifica sua textura e porosidade, ocasionando a formação de solos estéreis, ressecados, em vias de desertificação. Nesta última década, em particular, a monocultura da cana-de-açúcar já, quase que triplicou sua produção, no entanto, o consumidor da chamada “energia limpa” em nada foi beneficiado, basta verificar os preços do álcool nos postos de combustíveis. Quanto ao açúcar, basta olhar o preço do produto nas prateleiras dos supermercados.
A prática desta monocultura visa, em primeira instância, atender aos anseios e ganâncias dos usineiros e, em segunda instância os interesses dos fabricantes e das montadoras de automóveis. O Brasil continua com a mesma visão de quase quinhentos anos atrás, no que se refere á produção agrícola. O país vive de especulações sobre os tipos de monoculturas que atendem aos anseios do mercado internacional, principalmente os EUA, a Europa e Ásia, não importando com a demanda de seu mercado interno, nem com os interesses da maioria de seu povo, que fica à mercê dos preços impostos pelas grandes empresas agroindustriais multi/transnacionais.
Ironicamente, a mídia fala de responsabilidade sócio-ambiental, de educação ambiental e de proteção do Planeta, quando as ações dos governantes, empresários e instituições oficiais, primam pela defesa das monoculturas e da desertificação de grandes extensões de nosso território. É preciso aqui, rediscutir os conceitos de educação e de natureza, é preciso discutir, urgentemente a dimensão Ambiental da Educação.
A Educação (Ambiental) deve ser capaz de romper a camisa de força que a mantém aprisionada a velhos e falsos conceitos, que em última instância visam às reformas dentro dos marcos do capital. Hoje, existe uma gama de organismos oficiais, ONG’s, ambientalistas, ecologistas e correntes pedagógicas que se reivindicam do debate ambiental. Os “especialistas” do complexo campo de investigação das temáticas ambientais repetem, por caminhos diferentes, os mesmos discursos. Pensar na degradação ambiental de forma coerente e séria, é pensar na complexidade ambiental, é descartar os discursos superficiais do “politicamente correto”, da “preservação da ararinha azul, do mico leão dourado ou do boto cor de rosa”, do “ecologicamente correto” do “tomar consciência de”, pelo contrário, é assumir a (re)flexão epistemológica sobre a relação natureza-sociedade, é levar às últimas conseqüências este debate. A problemática ambiental é uma questão política, e, como tal deve ser tratada. Tratar das temáticas ambientais é rediscutir os verdadeiros significados de democracia, cidadania, de (des)envolvimento. Não se pode exigir daqueles colocados à margem da utilização dos recursos naturais, a aceitação de padrões preestabelecidos por aqueles que se utilizam, a seu bel prazer, dos recursos da natureza, como forma de mercantilizá-la, colocando-a a serviço da reprodução irracional do capital e, gerando o bem estar social para uma pequena parcela da população mundial.
Neste sentido, o Brasil têm uma enorme responsabilidade, justamente por sua extensão territorial (dimensão continental). É necessário inverter a lógica de sua produção agrícola, o país deveria desenvolver a rotação de culturas, diversificação de espécies cultivadas, plantio direto, agricultura orgânica, enfim, saber conservar o patrimônio genético natural com o qual a natureza, sabiamente, privilegiou o país. Do contrário, dentro de pouco tempo o verde do continente Sul Americano, perderá seu esplendor e dará lugar ao marrom/ocre que caracteriza as regiões desertificadas.
Por fim, é necessário envolver a sociedade, as comunidades acadêmico-científicas, a sociedade civil organizada, enfim, os vários setores representativos da população brasileira, num sério debate, onde se coloque no centro das discussões a problemática da prática das monoculturas, visando buscar formas alternativas de uso e manejo corretos do solo e dos demais recursos naturais, não perdendo de vista as necessidades da população brasileira, bem como a busca de novas formas alternativas no trato das relações sociedade-natureza.

REFERÊNCIA


GRAZIANO NETO, F. Questão Agrária e Ecologia: crítica da moderna agricultura. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986. Cap. II, p.93-134.



REFERENCIAL: Este artigo foi originalmente publicado na revista DESTAQUE IN, conforme referencial abaixo.

FONSECA, V. M. da. TRIÃNGULO MINEIRO: A onda “amarga” da monocultura da cana-de-açúcar invade o Cerrado. In Rev. DESTAQUE IN, Ano 12, Nº. 70, julho/agosto 2006, Sacramento, p.13-17.

AQUIFERO GUARANI: O maior reservatório de água subterrânea da América do Sul é ameaçado pela poluição



Por Valter Machado da Fonseca[1]

Imagem: USP (2009)
O sistema capitalista, por um lado, conseguiu imprimir com grande eficiência, o avanço técnico-científico nas áreas de superprodução de bens de consumo, da indústria química e petroquímica, da automação, robótica, nuclear, armamentos, da engenharia genética, de eletro-eletrônicos, de alimentos, etc.; além de imprimir um novo ritmo à indústria da informática, das telecomunicações e dos transportes. Por outro lado, ele promoveu a marginalização de largas camadas da humanidade, o aparecimento de novas doenças, o ressurgimento de males medievais, principalmente nos países atrasados; a desnutrição, o acúmulo de todo o tipo de lixo, a destruição de grande parte da vegetação, a contaminação das águas e do solo, a substituição de biomas inteiros, como o Cerrado e a Mata Atlântica, por atividades agropecuárias.
As conseqüências do impacto ambiental foram as mais drásticas possíveis. Já no início da Revolução Industrial, com a utilização das máquinas a vapor, iniciou-se um violento ataque à biomassa do planeta, com milhões de km² de florestas virgens sendo devoradas para a manutenção da indústria de base, principalmente a siderurgia e o transporte ferroviário.
A degradação das florestas veio acompanhada da deterioração das águas por produtos químicos e resíduos, advindos das indústrias. Com a superprodução industrial, surgem outros tipos de poluição que afetam, além das águas superficiais e subterrâneas, também os solos, a atmosfera e os seres vivos, dentre eles o homem. Hoje convivemos com os perigos decorrentes da poluição atmosférica, do acúmulo de lixo doméstico e resíduos industriais, do excesso de lixo tóxico e nuclear, além dos problemas causados pela emissão de gases tóxicos para a atmosfera, como o efeito estufa, o aquecimento global, as chuvas ácidas e o buraco na camada de ozônio.
É exatamente dentro deste contexto das contradições oriundas do modelo de desenvolvimento capitalista que se situa a problemática da contaminação das águas.
A mídia comumente tenta repassar falsas concepções a respeito desta problemática como: "a água do planeta está ameaçada de extinção" ou, "a população que joga seu lixo nas ruas ou nos lagos, córregos e riachos é responsável pelas catástrofes ou inundações, etc.". Este procedimento, muito comum, da mídia é a simplificação do problema, trata-se de um método ilusório de focalizar o problema em simples casos isolados, tentando jogar o ônus da crise ambiental sobre os ombros da população.
É importante destacar que, a quantidade de água existente no planeta não está diminuindo ou aumentando, ela se mantém constante, pois é regulamentada pelo ciclo da água que determina sua movimentação em seus diversos estados (sólido, líquido e gasoso), em uma dinâmica perfeita que mantém constante a quantidade de água no planeta.
As técnicas avançadas da produção industrial aplicada à agricultura e mais recentemente o desenvolvimento da biotecnologia especialmente a biotecnologia de alimentos, tem produzido uma gigantesca quantidade de insumos agrícolas e agrotóxicos que causam a contaminação dos rios, lagos, solos e aqüíferos subterrâneos. Os produtos químicos aplicados à agricultura contaminam além das águas e dos solos, também os alimentos consumidos pela população, trazendo prejuízos irreparáveis à saúde humana. É neste contexto, que se situa o processo de aceleração da poluição do maior reservatório de água subterrânea da América do Sul: o Aqüífero Guarani, que será tratado em tópico à frente.

1 - O fim do ciclo do petróleo e a estratégia geopolítica da água como recurso energético.

A humanidade assiste, neste início de século, ao fim de um de um recurso natural não renovável: o ciclo do petróleo. O fim inevitável da utilização do petróleo, enquanto fonte de energia coincide com o início da estratégia geopolítica da água, considerada um recurso natural renovável.
A geopolítica do petróleo, neste limiar de século, tem servido de subterfúgio para ameaçar a autonomia e a autodeterminação dos povos, justificativas, escondidas atrás de discursos “anti-terror” e “anti-nucleares”, para invasão de territórios, principalmente daqueles onde se encontram as maiores jazidas deste recurso natural. Em nome de subterfúgios espúrios, justificam-se guerras e carnificinas. Por outro lado, a utilização dos combustíveis fósseis tem sido a maior responsável pela poluição e degradação do planeta, desde que eles foram descobertos como forma de energia.
A indústria automobilística é hoje, sem sombra de dúvida, a principal responsável pela emissão de gases tóxicos para a atmosfera, principalmente o dióxido de carbono (CO2). Os subprodutos do petróleo fabricados nos pólos petroquímicos, a exemplo dos plásticos, são os grandes vilões da superprodução de lixo doméstico e industrial, transformando o planeta em um grande depósito de resíduos. Neste último período, em particular, assiste-se à progressão, sem precedentes, do aumento do nível dos oceanos e da temperatura da Terra (aquecimento global), o que incide, diretamente, sobre as drásticas alterações climáticas (derivadas do efeito estufa) que sevem de “sinal de alerta” acerca do futuro incerto de todas as espécies de seres vivos, dentre elas o Homo Sapiens.
Agora, o ciclo do petróleo está em sua fase derradeira. Os centros de estudos do mundo todo já realizam pesquisas sobre a utilização da água como fonte alternativa de energia. Neste sentido, este precioso recurso natural ganha um enorme valor econômico e geoestratégico, ao lado do valor econômico agregado à biodiversidade. Porém, a utilização da água como fonte de riqueza, no atual modelo econômico de desenvolvimento das forças materiais da sociedade, despreza-a como fonte de vida. A nova tecnologia, apesar de não diminuir a quantidade total da água do Planeta, utiliza o precioso recurso natural como se ele não fosse necessário à continuidade da vida. A poluição das águas faz parte do conjunto de fatores degradantes dos recursos da natureza.
É importante salientar que o Brasil, sozinho, possui 12% da água potável do globo terrestre. Diante disso, torna-se alvo de cobiça dos países ditos desenvolvidos. É até incompreensível o modo como são tratados os recursos hídricos no país. Grande parte do complexo industrial brasileiro despeja seus rejeitos e resíduos diretamente nos corpos d’água. Por seu lado, as novas tecnologias agroindustriais utilizam-se de milhares e milhares de toneladas de agrotóxicos e insumos agrícolas, por intermédio da prática das monoculturas, colocando em risco as águas subterrâneas. O Brasil abriga 2/3 do maior reservatório de água subterrânea da América do Sul: o Aqüífero Guarani, que já está sendo seriamente ameaçado pela utilização desordenada de suas águas e pela utilização de agrotóxicos pela prática das monoculturas de exportação.

2 - Aqüífero Guarani: a maior reserva de água subterrânea da América do Sul.

Segundo fontes do Instituto de Pesquisas Espaciais (INPE) e da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) o Aqüífero Guarani é a principal reserva subterrânea de água doce da América do Sul e um dos maiores sistemas aqüíferos do mundo, ocupando uma área total de 1,2 milhões de km² na Bacia do Paraná e parte da Bacia do Chaco-Paraná. Estende-se pelo Brasil (840.000 Km²), Paraguai (58.500 Km²), Uruguai (58.500 Km²) e Argentina, (255.000 Km²), área equivalente aos territórios da Inglaterra, França e Espanha juntas. Sua maior ocorrência se dá em território brasileiro (2/3 da área total) abrangendo os Estados de Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. O Aqüífero Guarani, denominação do geólogo uruguaio Danilo Anton em memória do povo indígena da região, tem uma área de recarga de 150.000 Km² e é constituído pelos sedimentos arenosos da Formação Pirambóia na Base (Formação Buena Vista na Argentina e Uruguai) e arenitos Botucatu no topo (Missiones no Paraguai, Tacuarembó no Uruguai e na Argentina).
O Aqüífero Guarani constitui-se em uma importante reserva estratégica para o abastecimento da população, para o desenvolvimento das atividades econômicas e do lazer. Sua recarga natural anual (principalmente pelas chuvas) é de 160 Km³/ano, sendo que desta, 40 Km³/ano constitui o potencial explotável sem riscos para o sistema aqüífero. As águas em geral são de boa qualidade para o abastecimento público e outros usos, sendo que em sua porção confinada, os poços têm cerca de 1.500 m de profundidade e podem produzir vazões superiores a 700 m³/h. Por ser um aqüífero de extensão continental com característica confinada, muitas vezes jorrante, sua dinâmica ainda é pouco conhecida, necessitando maiores estudos para seu entendimento, de forma a possibilitar uma utilização mais racional e o estabelecimento de estratégias de preservação mais eficientes.

2.1 - O Aqüífero Guarani como fonte de água potável e a prática das monoculturas.

Um exemplo clássico de utilização das águas do Guarani é o abastecimento de água da cidade de Ribeirão Preto (SP). Toda a cidade (100%) é abastecida pelas águas do Aqüífero Guarani. Grande parte deste abastecimento é feita sem planejamento, conforme informam estudos da UNICAMP, como se o reservatório tivesse um tempo de vida infinita. Segundo denúncias do Núcleo de Economia Agrícola (NEA), do Instituto de Economia da UNICAMP, “Os cerca de 500 poços artesianos abandonados em Ribeirão Preto, a redução do nível da água em cerca de 60% e a possibilidade de contaminação dos mananciais próximos às áreas agrícolas, ameaçam a existência da maior reserva de água potável da América Latina: o Aqüífero Guarani”. Como a cidade de Ribeirão Preto, existe, aproximadamente, uma centena de outras cidades do sudeste que exploram as águas do aqüífero.
Apesar de ser um problema, este não é o maior deles. O maior problema de contaminação das águas, tanto superficiais quanto subterrâneas, se liga ao uso e manejo incorretos dos solos agrícolas, por intermédio das práticas das monoculturas voltadas para a exportação. Agora as preocupações se avolumam com a volta da monocultura da cana-de-açúcar, que arrasa os solos e diminui o nível de água dos lençóis freáticos. Este tipo de monocultura afeta a bioestrutura dos solos, ressecando-os, deixando-os em vias de desertificação. O uso massivo de agrotóxicos e de todo tipo de herbicidas e pesticidas, as altas dosagens de insumos agrícolas, acabam contaminando as águas superficiais e subterrâneas.
Portanto, o Aqüífero Guarani é um recurso natural de valor estratégico incalculável, como fonte de água potável, para esta e para as futuras gerações. Cabe a toda a população brasileira zelar pela garantia da preservação deste valiosíssimo recurso da natureza, como forma de garantir a continuidade da vida no planeta. Para encerrar, nada melhor que a citação de Paulo César de Almeida Freitas (2006): “Acredito ser de uma insensatez e irresponsabilidade sem limites, a utilização das águas do aqüífero Guarani, pois como se sabe, é um recurso finito e por isto deveria ser objeto de uma legislação específica, que viesse proteger este tão importante manancial, que representa um recurso hídrico estratégico, por ocasião de uma eventual escassez. Escassez esta que pelas evidências hoje observadas, já se pode antever, resultado da insaciável e insana sede do poder demonstrada até então pelo ser humano, que faz com que seres racionais ajam contra si próprios e seus descendentes, agredindo implacável e cruelmente o meio ambiente. É como relata a obra "O clamor das águas", que em certo trecho diz: ‘Caso nos próximos trinta anos, o homem não tiver revertido o quadro de degradação e flagelo por ele imposto à natureza, a vida por sobre a terra estará irremediavelmente comprometida. Ou seja, baseado nesta previsão, caso não promovamos uma radical mudança em nossas atitudes comportamentais, a geração que hoje habita o planeta poderá ser... a última’. Diante do exposto, espero que doravante ajamos com responsabilidade e senso preservacionista a fim de não deixarmos como legado às futuras gerações, uma terra árida, desértica, com altas temperaturas, enfim, um lugar que não ofereça um mínimo de condições de sobrevivência”.
Por fim, este é um primeiro artigo que ouso escrever sobre o Aqüífero Guarani. Numa próxima oportunidade, pretendo oferecer um novo ensaio sobre o tema, por intermédio de uma análise mais meticulosa e mais aprofundada.

[1] Técnico em Mineração, Licenciado em Geografia pela UFU, Professor de Geografia, Sociologia e Filosofia do Ensino Médio, Coordenador da Associação dos Geógrafos Brasileiros, seção Uberaba (AGB/Uberaba), Mestre em Educação Ambiental pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia – FACED/UFU.

domingo, 24 de maio de 2009

EDUCAÇÃO, EXCLUSÃO E DIFERENÇA.

Foto: Retrato da desigualdade social

EDUCAÇÃO, EXCLUSÃO E DIFERENÇA.[1]

[1] Texto apresentado e publicado nos anais do IV Seminário Nacional “O UNO E O DIVERSO na Educação Escolar”, Promovido pelo Programa de Posgraduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia, Realizado na UFU, campus Santa Mônica no ano de 2006.
Por Carmem Lúcia Ferreira


1 – Introdução


É praticamente impossível, nos dias de hoje, debater as temáticas educacionais sem tratar do binômio exclusão/diferenças. Estes termos vêm à tona, cada vez com mais freqüência, na proporção direta em que se aprofundam as desigualdades sociais, culturais, étnicas, religiosas, dentre outras. Estes aspectos se tornam bem mais visíveis, principalmente quando se trabalha com jovens e crianças dos movimentos sociais e/ou de escolas públicas dos bolsões de pobreza das médias e grandes cidades do país.
Este trabalho procurará enfocar estes aspectos, tomando-se por base o ambiente cotidiano, no qual vivem os alunos das periferias pobres das cidades. Procurará, acima de tudo, analisar a discrepância existente entre o modelo educacional que orienta a escola tradicional, quando confrontado com esta realidade, marcada, profundamente, pela exclusão e pela marginalização dos educandos que vivem nestas localidades.
O texto buscará a construção de um processo, que leve à necessária reflexão acerca desta problemática, com o intuito de avançar na construção de um outro modelo educacional que considere a singularidade e diferenças entre os educandos, objetivando perseguir o resgate da identidade e dignidade humana desses alunos.

2 - Contextualizando o debate.

O trabalho educativo com setores marginalizados da sociedade, ou setores populares requer uma reflexão sobre a escola tradicional ou formal, sobre a relação de ensino/aprendizagem e sobre os processos de exclusão/inclusão educacional e social.
Para tanto, é preciso considerar a escola da modernidade como fruto do processo de desenvolvimento da sociedade capitalista, o qual deriva do pensamento positivista. Este pensamento deu origem à racionalidade técnica e científica, originada a partir da idade das luzes, no continente europeu. Então, a escola da modernidade reproduz, fielmente, o discurso homogeneizador decorrente dessa racionalidade.
Neste contexto, a escola vem se reestruturando para atender as demandas da economia de mercado, base do atual modelo de desenvolvimento. Dessa “nova” organização escolar ocorre, simultaneamente, a perda de autonomia do educador, conforme enfatiza MARIANO F. ENGUITA, 1991, p. 23:

A urbanização, a introdução das escolas completas e seriadas, as concentrações escolares, a expansão do setor público, a criação de escolas privadas para setores com poder aquisitivo alto e sua generalização para todos com a política de subvenções, e a expansão do setor público são os fatores que têm feito desaparecer o docente autônomo, inclusive o mestre público semi-autônomo da zona rural.

De fato, a nova ordem estabelecida pelo racionalismo leva a conflitos, cada vez mais evidentes entre as conseqüências deste pensamento e a realidade do cotidiano escolar. O pensamento positivista retoma com vigor o discurso homogeneizador da escola, como forma de legitimar os problemas sociais crônicos dos dias atuais.
ANGEL PÉREZ GOMES (1995, p.59), ilustra bem esta situação:

A realidade social não se deixa encaixar em esquemas preestabelecidos do tipo taxonômico ou processual. A tecnologia educativa não pode continuar a lutar contra as características, cada vez mais evidentes, dos fenômenos práticos: complexidade, incerteza, instabilidade, singularidade e conflitos de valores. (grifos do autor).
É com base nos elementos supra citados, que se deve analisar o trabalho educativo com os setores populares e a educação informal no contexto dos movimentos sociais.

3 - A Prática Educativa em escolas públicas das comunidades carentes.

A prática educativa com os setores populares e/ou com os movimentos sociais pressupõe o entendimento da rede de vivências sociais, como: desemprego, subnutrição, falta de condições de higiene, saúde, saneamento, fome, falta de carinho, amor, dentre outras. Neste caso, o educador deve estar aberto às relações aprender/ensinar e ensinar/aprender, o que significa colocar-se nas condições da realidade do cotidiano dos educandos, fazendo a relação entre as suas vivências sociais, sua realidade concreta com os conteúdos escolares, com os quais se trabalham.
Nesta situação, o cotidiano escolar possui aspectos singulares, conforme define MARIA TERESA ESTEBAN, 2003, (p.200-201):

As questões se avolumam quando situamos a pesquisa no cotidiano da escola em que interagem sujeitos das classes populares. Pois o cotidiano é o tempo/lugar do pequeno, do desprezível, do sem-importância, do irrelevante, do episódico, do fragmento, do repetitivo. E as classes populares também congregam os sujeitos sem importância, pequenos, desprezíveis. Fatos e pessoas que não correspondem às grandes narrativas que constituíram o discurso privilegiado das ciências, tornando-se invisíveis a uma ciência que não incorpora em suas análises o drama e a trama da sociabilidade dos simples, aqueles a quem a vida social imprimiu a aparência de insignificantes e que como insignificantes são tratados. (grifos da autora).

Portanto, esses aspectos levam à reflexão aprofundada sobre a exclusão social/educacional e a procura de caminhos que levem a escola a buscar métodos de inclusão, considerando as particularidades de cada educando, rompendo-se, destarte, com o discurso homogeneizador de coisificação do homem.
Para se obter sucesso nessa prática educativa, torna-se imprescindível repensar a relação ensino/aprendizagem decorrente da escola tradicional, reprodutora do pensamento positivista. O educando deve ser compreendido em suas particularidades, como sendo diferente entre os supostamente iguais. Para tanto, deve-se valorizar os conhecimentos e experiências que ele já traz consigo, fruto de sua rede de vivências sociais, construída no cotidiano da sua realidade. Essas particularidades refletem os aspectos que levam à exclusão, os quais devem ser objetos de estudo dos educadores que se preocupam com a construção de um novo modelo escolar.
ISABEL ALARCÃO, 2001, adverte sobre a relação professor/aluno advinda da escola tradicional:

[...] O poder era apenas do professor porque era ele que detinha o saber, de uma forma absoluta, indiscutível e com autoridade. O aluno era o ignorante, o inculto, o aprendiz que era preciso ensinar, conduzir, disciplinar, controlar. Por isso, a relação do professor com os alunos era naturalmente distante, uma relação de superioridade e, em conseqüência, esperava-se dos alunos uma atitude de docilidade e de obediência, própria do discípulo, seguidor, imitador. O objetivo da aprendizagem visava à aquisição dos conhecimentos transmitidos e à imitação do mestre, como o modelo a seguir. Desse modo, o aluno deixava-se formar, modelar, de acordo com os “moldes” preestabelecidos. (ALARCÃO, 2001, p.98)

Portanto, para se trabalhar a prática educacional nos movimentos dos excluídos, faz-se necessário repensar atitudes e responsabilidades com o intuito de construir um modelo educacional eficaz, que seja capaz de romper com os dogmas e verdades arraigados na escola tradicional.


4 – A escola tradicional e o projeto homogeneizador.

Na grande maioria das vezes, a escola tradicional parte de um projeto que sirva de modelo para o conjunto dos educandos, como se estes fossem desprovidos de identidade própria, de particularidades, de singularidades. Constrói um modelo plural de educação. Considera supostamente iguais, os diferentes.
Os tempos cruéis da chamada “sociedade global” faz entrar em cena, de uma vez por todas, um novo tipo de aluno. Trata-se de alunos “rebeldes”, que não pedem licença, que desafiam a autoridade da escola e do “mestre”. A escola e seu projeto plural não conseguem lidar com esta situação conforme destaca MOREIRA (sd., p.2):

O professor empenha-se no sentido de melhor conhecer quem são esses novos alunos, quem são esses outros, esses “estranhos”, esses diferentes, que entram sem pedir licença, que transgridem regras e normas e que resistem aos mais agudos apelos de acomodação à ordem vigente. Como lidar com eles, como incluí-los? Como lidar com alunos tão distantes da visão idealizada de estudante que a escola sempre cultuou? Como lidar com alunos portadores de necessidades especiais, com problemas na justiça, com um pé na criminalidade, com dificuldades de aprendizagem, com condutas inesperadas e violentas? Como lidar com alunos pobres, negros, favelados, migrantes, homossexuais, membros de famílias “desajustadas”? Como entendê-los melhor? Esses “estranhos” continuam a desestabilizar as iniciativas da escola. (MOREIRA, sd.: 02)

Neste sentido, a escola vem procurando se ajustar para enfrentar os problemas da marginalização de largas camadas de jovens e crianças. Mas este é um problema complexo. Trata-se de um problema que deve remeter a escola a uma série de reflexões sobre seu papel, enquanto formadora de cidadãos e seu papel social. Aí, a escola deve procurar identificar as origens do comportamento desses “estranhos”, que entram na sala de aula sem pedir licença. Esses “estranhos” são frutos das contradições de um modelo que exclui, que marginaliza, que torna a escola seletiva. O problema não está no aluno, mas na estrutura deste modelo de desenvolvimento, que coisifica o homem e a natureza, que afasta o aluno de sua essência, enquanto parte de um todo: a natureza.
O grande desafio da instituição escolar é responder aos anseios dos vários grupos que a compõem. Portanto, a Política Educacional a ser estruturada tem que responder aos dilemas e impasses latentes na nova sociedade que está configurando-se.
Com a junção destes fatores não se pode deixar de lado o questionamento, da crise estrutural global eminente, o desafio da política educacional e ampla, pois, o individuo tem vários pólos de interesse, atingi-lo e trazê-lo para o desenvolvimento de uma proposta que seja comum a todos é o desafio.

A nossa tarefa educacional é, simultaneamente, a tarefa de uma transformação social, ampla e emancipadora. Nenhuma das duas pode ser posta à frente de outra. Elas são inseparáveis. A transformação social emancipadora radical requerida é inconcebível sem uma concreta e ativa contribuição da educação no seu sentido amplo, tal como foi descrito neste texto. E vice-versa: a educação não pode funcionar suspensa no ar. Ela pode e deve ser articulada adequadamente e redefinida constantemente no seu inter-relacionamento dialético com as condições cambiantes e as necessidades da transformação social emancipadora e progressiva em curso. Ou ambas têm êxito e se sustentam, ou fracassam juntas. (MÉSZÁROS, 2005:76-77).

Desta forma, não se pode pensar ou trabalhar um projeto educacional perdendo de vista a construção de um novo paradigma, que leve em consideração o desafio da inclusão, em toda a extensão da palavra.
Para finalizar é importante destacar uma citação de REGINA LEITE GARCIA (2000):

Em sua luta pela construção de uma sociedade mais justa, solidária e igualitária se inclui a luta pelo direito à escola, pois que para construir uma sociedade realmente democrática há que se acompanhar a luta por um projeto político-pedagógico emancipatório, que vá preparando os novos homens e mulheres para juntos construírem uma nova sociedade. Não é qualquer escola que serve a propósitos emancipatórios. Aos que estão engajados num projeto emancipatório não interessa uma escola que conte a história dos vencedores, como se os temporariamente vencidos o tivessem sido por sua própria incapacidade ou por fraqueza. A escola que lhes interessa é uma escola que conte a história do ponto de vista dos invadidos, dizimados, escravizados, explorados, pilhados, assujeitados no perverso processo de colonização, cujos descendentes continuam em sua ação emancipadora. (GARCIA, 2000, p.8-9)

A formulação de Garcia aponta no sentido da construção de um projeto político-pedagógico, que avance no sentido da construção de uma escola que supere a exclusão e as diferenças que tanto marcam a vida dos educandos no ambiente escolar. Para isso, faz-se necessária a ruptura com este modelo compartimentado e fragmentado de currículo oficial, totalmente distante da realidade cotidiana dos educandos.
A escola deve se constituir num local privilegiado, onde se possa debater as desigualdades sociais, os preconceitos, a discriminação. Ela deve se colocar como um canal onde se possa debater sua própria crise, a ligação e os vínculos que a mantém ligada a um projeto de sociedade que privilegie a cultura, as artes, a criatividade e traga de volta a dignidade humana para os educandos. É este o modelo de escola que se deve discutir. É preciso urgentemente descartar o discurso do projeto educacional igualitário e homogeneizador, que considera jovens e crianças como coisas, moldáveis aos anseios, desejos e necessidades de uma elite conservadora, que faz da escola um instrumento ideológico de dominação.


5 - Considerações Finais

Este ensaio discorreu, de forma superficial, sobre o trabalho escolar com educandos ligados aos movimentos sociais e/ou aos setores populares da sociedade capitalista contemporânea. Abordou ainda os problemas decorrentes da orientação positivista característica do modo de produção capitalista. Enfocou aspectos de exclusão sócio-educacional e da relação ensino/aprendizagem decorrentes do atual modelo de desenvolvimento e da concepção de ciência, sobre a qual se edificou a educação tradicional.
Por fim, o texto argüiu sobre as possibilidades de educadores e educandos construírem um novo modelo de relação ensino/aprendizagem, onde se tenha a preocupação central do desenvolvimento da relação dialógica entre professor, aluno e comunidade na qual, a escola está inserida. Neste sentido, é fundamental que os educadores participem de forma efetiva dos problemas do cotidiano dos educandos, ligando-os aos conteúdos ensinados pela escola.
Desta maneira, estar-se-á construindo uma nova forma de ensinar: ensinar aprendendo e aprender ensinando. Estar-se-á dando um passo, fundamental, no sentido da ruptura com a educação formal e da construção de um novo modelo escolar, onde o educando ocupe o lugar de destaque na construção de novos conhecimentos e novos saberes.
Por fim, ele aponta no sentido da escola rediscutir seu papel enquanto formadora de novos sujeitos, os quais possam intervir, de forma efetiva, para a transformação social. Ele aponta para a construção de modelo educacional que valorize as diferenças e a singularidade dos educandos. É necessária a reflexão acerca da relação que a escola estabelece com os educandos e com as comunidades, nos tempos atuais. Partindo dessas reflexões, é possível iniciar a elaboração teórico/prática de um projeto educacional que vá de encontro a um outro modelo de sociedade, que resgate a dignidade do educando, sob a ótica de um novo paradigma, que (re) signifique a essência da existência humana.



6 – Referências

ENGUITA, Mariano F. A Ambigüidade da Docência: entre o profissionalismo e a proletarização. Teoria e Educação, Porto Alegre, n.4, p.41-61, 1991.

ESTEBAN, Maria Teresa. Dilemas para uma pesquisadora com o cotidiano. In: GARCIA, Regina Leite (org). Método: Pesquisa com o cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p.199-212.

GARCIA, R.L. Movimentos Sociais: escola – valores. In: Aprendendo com os Movimentos Sociais. Rio de Janeiro: DP & A, 2000.

HALL, S., A identidade cultural na Pós-Modernidade, Tradução: Tomaz Tadeu da Silva, Guacira Lopes Louro, 10ºEd., Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

MÉSZÁROS, I., A educação para além do capital, Tradução: Isa Tavares, São Paulo, Boitempo, 2005.

MOREIRA, A.F.B., Identidade, Saberes e Práticas, Texto derivado da pesquisa Currículo, Identidade e Diferença: Embates na escola e na formação docente, CNPQ, (Mimeo), sd.

PÉREZ GOMES, Angel. O pensamento prático do professor: a formação do professor como profissional reflexivo. In: NÓVOA, António. Os professores e a sua formação. Lisboa: Don Quixote, 1992. p.93-114.

TAVARES, J; ALARCÃO, I. Paradigmas de formação e investigação no ensino superior para o terceiro milênio. In: Alarcão, I. (org). Escola reflexiva e nova racionalidade. Porto Alegre: ARTMED, 2001, p.98-114.

VIEIRA, S.L., Política Educacional em tempos de Transição: 1985-1995, Brasília: Plano, 2000.

AS CIÊNCIAS HUMANAS: Entre o engajamento e o compromisso

Por Humberto Aparecido de Oliveira Guido[1]


O argumento desta exposição surgiu com a leitura dos textos dos seminários organizados por Foucault em meados da década de 70 do século passado no Collège de France, os textos foram reunidos sob o título Em defesa da sociedade, que foi propriamente o tema do seminário de 1976. O que chama a atenção do no trabalho de Foucault é o seu interesse devotado á compreensão da sociedade contemporânea e sua rede de poder que se alastra sem direção fixa, semelhante a um polvo, o capitalismo lança seus tentáculos em todas as direções, atuando em conformidade com a visão tridimensional da realidade. O título não deixa de ser ambíguo, pois o sistema capitalista age supostamente em defesa da sociedade, no entanto, a análise atenta revela os mecanismos de poder que são empregados tendo em vista a perpetuação da ordem vigente, aquilo que se apresenta como salvação da sociedade e salvaguarda do indivíduo pode ser entendido como força contrária à autonomia da sociedade, a palavra autonomia é empregada aqui ma acepção utilizada por Kant em seu escrito de intervenção Resposta à pergunta: que é esclarecimento? O artigo de Kant define a autonomia como o produto do processo de emancipação.

Historicamente a sociedade burguesa trouxe em sua bagagem a proposta de emancipação da sociedade, estando ela condicionada à liberdade do indivíduo, os pensadores dos séculos XVII e XVIII mostravam-se esperançosos quanto à realização deste intento, fazia parte das filosofias do período o cuidado dirigido á formação do novo homem. È interessante notar que cem anos antes do início do Século das Luzes, estando o mundo ocidental inserido no processo de mudança estrutural da sociedade, parte dos pensadores manifestavam um certo ceticismo em relação aos novos tempos. Montaigne, um dos representantes das primeiras gerações de burgueses bem sucedidos, não escondia o seu pessimismo quando observava o comportamento social da nova sociedade, em seus Ensaios quando rememorava uma ocasião na qual conheceu três indígenas brasileiros, ele lamentava o contato dos habitantes do novo mundo com as paisagens européias:

Três dentre eles (e como lastimo que se tenham deixado tentar pela novidade e trocado seu clima suave pelo nosso!), ignorando quanto lhes custará de tranqüilidade e felicidade o conhecimento de nossos costumes corrompidos, e quão rápida será a sua perda, que suponho já iniciada, estiveram em Ruen quando ali se encontrava Carlos IX. (Cap. XXXI, p. 105)

Boa parte da literatura da época, e não somente a cética, manifestava desalento quando refletia sobre os novos costumes, além de Montaigne, estão inscritos nessa perspectiva alguns dos escritores que se dedicavam ao gênero da utopia, outros que exercitavam o sarcasmo, nessa relação comparecem Rabelais, Erasmo, Tomás Morus, Étienne de la Boétie, entre outros. Para quem não tem familiaridade com a filosofia e a história, pode parecer que a crítica precoce da ordem recém instalada seja a expressão conservadora daqueles que se agarram aos escombros da velha ordem querendo-a mais do que qualquer vantagem que a nova ordem oferece. Não é essa a questão, pois os autores acima mencionados alimentam grandes esperanças quanto ao futuro, a crítica se dirige ao quadro ainda indeterminado da modernidade que traça velhas linhas por demais percorridas em vão pela sociedade humana.

A tensão manifestada nos escritos do século XVI passou desapercebida na análise de Foucault. Essas críticas por mais insipientes que possam parecer não deixam de ser, contudo, o diagnóstico das idiossincrasias da nova sociedade. A omissão não retira o mérito do trabalho de Foucault, mas certamente poderiam abrir novas possibilidades para a interpretação da complexidade da sociedade burguesa e do seu modo de produção. Aquilo que passa desapercebido da crítica social oferece novos elementos para a análise da atitude radical dos autores do século XVI, que se apresentaram como os primeiros filósofos sociais, apesar da negligência com que são vistos pela posteridade. O descontentamento com o jugo do antigo regime que aparece no ensaio de La Boétie, não é propriamente um manifesto anarquista, no entanto, o escrito do jovem poeta francês, ele morreu com 33 anos, ilustra muito bem o tempo inaugural da modernidade, um momento singular em que a autoridade é duramente criticada e a evocação da liberdade são os motivos da nova filosofia. O vigor das palavras de La Boétie faz parecer que ele viveu o século XVIII, se as palavras a seguir não fossem atribuídas a ele, poderia parecer que se trata de Rousseau, eis as palavras de La Boétie:

É o povo que se escraviza, que se decapita, que, podendo escolher entre ser livre e ser escravo, se decide pela falta de liberdade e prefere o jugo, é ele que aceita o seu mal, que o procura por todos os meios.
Se fosse difícil recuperar a liberdade perdida, eu não insistiria mais; haverá coisa que o homem deva desejar com mais ardor do que o retorno à sua condição natural, deixar, digamos, a condição de alimária e voltar a ser homem?
Mas não é essa ousadia o que eu exijo dele; limito-me a não lhe permitir que ele prefira não sei que segurança a uma vida livre.
Que mais é preciso para possuir a liberdade do que simplesmente desejá-la?

A consolidação da sociedade burguesa e do sistema capitalista corroborou para que as máximas humanistas fossem deixadas à margem da história em favor da nova ciência. O discurso filosófico daquele século não se mostra aos olhos hodiernos como manifestação intransigente do engajamento desses homens, suas palavras fluíam a partir da cosmologia moderna que reservou ao homem o assento privilegiado na disposição dos lugares que os corpos naturais ocupam no espaço, o homem é o ápice da criação, ele reina na Terra e sobre todas as criaturas, a igualdade natural é a grande máxima do pensamento político, embora o século XVI seja também o de Maquiavel, o encarregado de formular as bases da formação do príncipe moderno.

A igualdade natural ficou restrita à teoria do conhecimento, esta disciplina ficou encarregada de justificar o declínio da liberdade da pessoa humana em sociedade, porque a ótica moderna que atestou a liberdade atribuiu ao indivíduo a perda da liberdade em decorrência da sua negligência ao trilhar a estrada do sucesso. Erasmo havia dito que não se nasce homem, se faz homem, esta afirmação tencionou o sentido da liberdade que nos séculos seguintes seria objeto do debate da ciência política. A afirmação de Erasmo não atribuiu tanta ênfase à igualdade formal expressa na abertura do Discurso do método, as palavras de Erasmo querem atestar que a condição humana, a liberdade, é um projeto de vida construído durante a vida, desde a mais tenra idade — Erasmo dizia que o ventre materno é a primeira escola. O período de Erasmo foi marcado pelos progressos da história natural que já estavam bastante adiantadas na refutação da tese criacionista dos livros sagrados, contudo o pensador renascentista insistiu na idéia de que a liberdade não está naquilo que saiu das mãos da natureza, essa liberdade é construída.

Defensores da igualdade natural, os adeptos da teoria do conhecimento atribuíram à matemática a responsabilidade de tornar ato aquilo que existe desde sempre em potência, não em um indivíduo singular, mas na espécie como valor formal, este é um dos paradoxos da modernidade, um tempo em que se afirmou a dignidade do indivíduo, contudo, as afirmações sobre suas possibilidades eram sempre gerais sem considerar as condições sociais díspares em que se encontravam divididos os diversos estamentos sociais. A refutação da tradição foi a abertura que permitiu que se colocasse para fora da esfera educativa todos os conhecimentos que não se adequassem imediatamente ao more geométrico. A equação dos pensadores do século XVII contrastava com a síntese direta dos pensadores do século anterior, para os homens do seiscentos a igualdade é natural, então, somente uma educação voltada para as coisas naturais poderá conservar esta igualdade, a execução dessa tarefa deve deixar de fora todos aqueles conhecimentos que não podem ser reduzidos às grandezas matemáticas, o conhecimento matemático foi sinônimo de conhecimento científico, porque todas as ciências alcançam os seus propósitos aplicando a matemática nas suas atividades de investigação e dominação da natureza. Galileu Galilei foi o pensador que melhor sintetizou a importância da matemática para a expansão do conhecimento na perspectiva do saber é poder:

A filosofia [a sabedoria] encontra-se escrita neste grande livro que continuamente se abre perante nossos olhos (isto é, o universo), que não se pode compreender antes de entender a língua e conhecer os caracteres com os quais está escrito. Ele está escrito em língua matemática, os caracteres são triângulos, circunferências e outras figuras geométricas, sem cujos meios é impossível entender humanamente as palavras; sem eles nós vagamos perdidos dentro de um obscuro labirinto. (1987, p. 21)

A ignorância dos conhecimentos matemáticos relegava a pessoa humana a viver nas trevas, distantes de todas as idéias luminosas capazes de libertar o espírito humano das suas amarras colocadas pelas tradições antigas e medievais, religiosas e sociais. O aprendizado da matemática era o pré-requisito para a vida virtuosa, tal como fora na antiguidade, porém, a nova sociedade concebia a existência humana como um projeto de vida. Todos os homens nascem dotados de inteligência suficiente para ambicionar aquilo que querem ser, as desigualdades sociais decorrem da maneira como cada um se serve da inteligência, definida pelos modernos como a luz natural. Descartes foi um dos mais ardorosos defensores dessa igualdade natural: o poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso, que é propriamente o que se denomina o bom senso ou a razão, é naturalmente igual em todos os homens (1987, p. 29), o cultivo da razão contribui para aumentar a luza natural da razão, não para resolver esta ou aquela dificuldade de escola, mas para que em cada circunstância da sua vida, seu entendimento mostre á sua vontade o que é preciso escolher (1999, p. 4).

Descartes conseguiu preservar alguns traços da filosofia humanista, para ele a educação matemática é também educação moral, porque é de se esperar da matemática não apenas a solução de exercícios escolares, esta é a menor aplicação da ciência universal, o ensino da matemática deve contribuir para a formação da faculdade de julgar, conduzindo o aprendiz ao aprimoramento das suas escolhas almejando sempre o bom e o justo para que não somente o indivíduo, mas toda a sociedade humana alcance a emancipação intelectual, tornando-se mais justa e mais fraterna. Ainda no século XVII Descartes professava a sua esperança de um mundo melhor graças às novas descobertas científicas, para ele o novo mundo se tornava real porque as matemáticas eram as ciências mais fáceis e as mais claras de todas, e têm um objeto tal como o exigimos, pois que, salvo inadvertência, mal parece possível a um ser humano nelas enganar-se (1999, p. 9).

A mudança de rota ocorrida entre o século XVI e o os séculos posteriores configura-se como momento de descontinuidade, essa fratura não está em um ano ou uma década específica, não está escondida em um escrito que permanece desconhecido, a descontinuidade não será encontrada nos livros senão nas suas margens, nos saberes que se praticavam e que nem todos foram traduzidos em palavras impressas, a galáxia de Gutenberg ainda estava em expansão neste cenário em ebulição. A descontinuidade é o ponto de fuga que amplia a visão do todo, este ponto da arte renascentista não é um ponto fixo, ele pode estar em qualquer lugar, esse é o motivo da grande dificuldade do estabelecimento das ciências humanas, o seu objeto não é fixo. Foucault conseguiu formular um projeto de pesquisa para as ciências humanas inspirando-se nas páginas de Nietzsche, a genealogia, que foi assim descrita pelo pensador francês:

A genealogia seria, pois, relativamente ao projeto de uma inserção dos saberes na hierarquia do poder próprio da ciência, uma espécie de empreendimento para dessujeitar os saberes históricos e torná-los livres, isto é, capazes de oposição e de luta contra a coerção de um discurso teórico unitário, formal e científico. (2002, p. 15)

Os escritos deixados por Descartes centraram o vaticínio de Erasmo na consciência — na coisa pensante —, o dualismo contribuiu para aumentar a distância entre a igualdade natural e a liberdade individual, pois a secção da pessoa em corpo e intelecto, mantém de alguma maneira — mesmo que na profissão de fé involuntária do bom católico — a liberdade individual no plano da eternidade e sustenta a sujeição do corpo como sublimação das misérias humanas na esperança da redenção da dor, tendo na morte do corpo a glória da alma. O corpo perdeu a sua dignidade, ao contrário do que pode parecer à primeira vista a descoberta do corpo serviu para o seu assujeitamento, como dizia Foucault, quando se fala do corpo a referência é a algo que deve ser disciplinado, colocado no seu lugar.

O final do século XVII serviu para impor outros limites à igualdade natural, no momento em que Locke atestou que a propriedade privada está arrolada entre os dons naturais. A propriedade é o prolongamento do corpo, é ela que ameniza a frustração da morte do corpo da pessoa, porque não desaparece com o passamento da existência individual, a propriedade privada continua fazendo parte da existência do núcleo familiar. Na essência dos tratados sobre o governo civil, Locke deixou implícito que a igualdade natural não é absoluta, alguns nascem proprietários outros não, a conseqüência imediata dessa distinção natural é constituição do corpo político formado pelos proprietários, o cidadão pleno é o proprietário, seja ele o nobre decadente ou o burguês emergente.

A diferença entre Erasmo e Locke evidencia a arbitrariedade da interpretação da natureza, para alguns ela pode inspirar os mais elevados anseios de igualdade e fraternidade, e com a mesma intensidade reforçar os argumentos das desigualdades naturais que determinaram o projeto de vida, neste particular a ontogenia e a filogenia não se implicam, a pessoa fica entregue a própria sorte cumprindo em sua existência o seu fado carregando o seu fardo, não é necessário a aplicação da genealogia para notar a contradição do mundo burguês, o novo modo de vida conservou as desigualdades sociais atribuindo-lhes novo significado, elas não são obra do destino de cada um, mas simplesmente atestam o fracasso individual em um tempo no qual as oportunidades estão abertas a todos, alcançam o sucesso aqueles que — como dizia Maquiavel — sabem aproveitar as oportunidades, não é o príncipe e sim o burguês que passou a encarnar o homem de virtú.

O homem era o beneficiário da natureza que lhe havia concedido a liberdade para fazer da sua vida o seu patrimônio. Uma outra equação matemática passou a ser aplicada nos negócios da burguesia, essa equação só surgiu no final do século XVIII, mas teve em Locke o seu ponto de apoio. O homem burguês deve nortear a sua moral de acordo com o cálculo do prazer, uma equação matemática de autoria de Jeremias Bentham, que fixava como regra para as ações humanas o menor esforço tendo em vista o máximo prazer. Em suma, a sociedade burguesa admitia a igualdade natural, porém, a sociedade civil não é igualitária, ela se compõe de proprietários e não proprietários, somente os primeiros são cidadãos de primeira ordem, conseqüentemente, a equação matemática se aplicava a toda sociedade de maneira distinta: o menor esforço é o do burguês que responde pelo capital industrial, o maior esforço é o da classe trabalhadora que deve ser consumida na linha de produção capitalista, assim nesta equação matemática o prazer do burguês é a mortificação do trabalhador.

A atividade teórica de Foucault procurou reconstruir o quadro da modernidade, em que pese a omissão do pensamento do século XVI. O início da atividade se fez com as arqueologias das instituições sociais introduzidas pela sociedade burguesa: o hospital, o orfanato, o quartel, o cárcere, o manicômio, o colégio. Essas instituições estiveram encarregadas de acomodar os corpos em espaços reclusos — o cuidado para que o doente não dissemine por contágio os males do corpo, a criança desamparada sob os cuidados da caridade para fortalecer o corpo para o serviço braçal, o soldado instruído para o combate contra os inimigos da ordem, os delinqüentes cumprindo suas penas, o louco sendo purgado das suas alucinações, a criança e o adolescente recebendo instrução para a sua futura integração no mundo do trabalho. Estas instituições são órgãos de poder, elas se encontram nas extremidades do sistema e foram até recentemente pouco notadas, porque as ciências humanas devem se encarregar daquilo que está em circulação e não da história das condições de vida daqueles corpos alojados em espaços fechados e isolados da sociedade.

Foucault perverteu a filosofia política ao evidenciar que esta disciplina foi pervertida pelo poder. A máxima moderna do saber é poder condicionou não só a atividade científica, mas também a atividade filosófica que desde o Século das Luzes, compactua com aquela na sujeição dos saberes das pessoas. No lugar das análises gerais das relações de poder e das formas de governo, Foucault propôs a necessidade de se percorrer os meandros do poder, eis a primeira observação metodológica da genealogia:

[...] não se trata de analisar as formas regulamentadas e legitimadas do poder em seu centro, no que podem ser seus mecanismos ou seus efeitos de conjunto. Trata-se de apreender, ao contrário, o poder em suas extremidades, em seus últimos lineamentos, onde ele se torna capilar; ou seja: tomar o poder em suas formas e em suas instituições mais regionais, mais locais [...]. (2002, p. 32)

A filosofia pensada como sistema não se adequou ao método genealógico, lhe escapa a filigrana do poder, porque somente o poder colossal merece a atenção do filósofo e do cientista político. Mesmo a crítica mais contundente ao poder acaba contribuindo para o seu fortalecimento, porque a crítica, ou seja, a filosofia e a ciência almejam o poder, pensado sob o mesmo prisma do sistema, mudando apenas o foco de irradiação do poder. O filósofo e o cientista político podem mudar a perspectiva do olhar, nisto consiste a segunda observação metodológica da genealogia:

[não se trata de] considerá-lo [o poder] do lado de dentro, de não formular a questão [...] que consiste em dizer: quem tem o poder afinal? O que tem na cabeça e o que procura aquele que tem o poder? Mas sim de estudar o poder, ao contrário, do lado em que sua intenção — se intenção houver — está inteiramente concentrada no interior das práticas reais e efetivas; estudar o poder de certo modo, do lado de sua face externa. (2002, p. 33)

O limite da teoria política clássica é o Estado, a máxima iluminista de que o poder emana do povo e em seu nome é exercido se mostra como uma bela expressão retórica, contudo, o Estado não é esta instituição popular, a explicação para isso reside no fato de que o poder é privativo do sistema econômico, tal como ele foi gestado, tal como ele começou a ser aplicado, se perpetuando nos últimos quatrocentos anos. Qualquer análise que não se atenha à dinâmica do poder sta fadada a legitimá-lo. Boa pare da teoria política moderna está apoiada na concepção mecânica do mundo, tendo a natureza como o modelo de regulação do bom funcionamento do corpo político, em que pese o vínculo do capitalismo com as máquinas industriais que servem de metáfora para o corpo e para o mundo, o bom funcionamento do sistema demanda o trabalho das máquinas de guerra, que são dispositivos subliminares que atuam nas extremidades do sistema para lhe garantir a coesão. Diferente das máquinas fixas nas divisões das fábricas, as máquinas de guerra atuam ocupam todos os lugares, ela pode ser associada ao panopticon benthaniano, o olho onipresente do poder, assim:

O poder funciona. O poder se exerce em rede e, nessa rede, não só os indivíduos circulam, mas estão sempre em posição de serem submetidos a esse poder e também de exercê-lo. Jamais eles são o alvo inerte e consentidor do poder, são sempre seus intermediários. Em outras palavras, o poder transita pelos indivíduos, não se aplica a eles. (2002, p. 35)

O propósito da obra Mil Platôs é a crítica da ciência moderna. Esta entidade é bem mais ampla e complexa do que as representações ingênuas que são veiculadas nas publicações da literatura científica. A crítica da ciência é oportunidade para discutir a sociedade ocidental, especialmente o estágio moderno e também o contemporâneo, que ainda é permeado pelas práticas e valores modernos. Esta crítica é possível quando os partidários das ciências humanas abdicam da teoria da ciência dando lugar à filosofia como instância de discussão dos caminhos para a efetivação do estudo da sociedade tendo em vista a emancipação tanto do indivíduo quanto do coletivo. De início, Mil Platôs deixa nítida a refutação dos dois caminhos intentados a partir dos sistemas dos pensadores do século XIX, seja o cientificismo de Comte, seja a redução economicista da obra de Marx.

Em uma entrevista concedida logo após a publicação de Mil Platôs, Deleuze dizia que nos estudos filosóficos lhe desagradava sobremaneira o idealismo e a dialética. Porém, estas palavras devem ser avaliadas à luz do texto, pois se a crítica se dirige ao pensamento cativo, é preciso admitir também que a reflexão dos autores almeja a releitura, isto é, o resgate do significado das obras de Hegel e Marx libertas do formalismo das interpretações tendenciosas, que geram formulações que se distanciam da originalidade dos autores mencionados. A dialética é a chave de interpretação das ações humanas, ela não pode ser abandonada, contudo, a dialética mecanicista que se prende unicamente à ordem econômica configura-se como estratégia dogmática que pensa a tomada do poder, sem considerar o que é o poder. Aqui fica clara a distinção entre Marx e certa posteridade marxista, para o pensador alemão a tarefa da filosofia e da ciência é a superação da opressão gerada pela divisão do trabalho e pela dominação do capital, somente a abolição do poder de Estado contribuirá para a libertação humana, a nova sociedade surgirá no momento em que todas as etapas preparatórias tiverem sido executadas — a revolução proletária, a ditadura do proletariado ou o socialismo, finalmente a sociedade sem classes —, o que deverá culminar no fim do Estado.

O projeto de Marx deixou clara a sua aversão ao poder de Estado, que em última instância é o poder do capital, cuja eficácia decorre da efetivação da ciência como produção dos mecanismos de consolidação e reprodução do poder de Estado, que tira o seu sustento do consumo da natureza e da força de trabalho. A crítica do poder não foi assimilada pelos ideólogos marxistas, historicamente esses agentes reformadores estiveram mais empenhados na tomada do poder e negligenciaram na efetivação das demais etapas preparatórias da sociedade universal, ou a sociedade sem classes: o comunismo. A compreensão da filosofia de Marx empreendida por Foucault não deixa ser a crítica a um certo tipo de marxismo que compactua com a idéia de poder vigente. A crítica de Foucault evidencia o idealismo do marxismo de Estado, diametralmente oposto ao intento da práxis, ou a força do entendimento capaz de identificar no poder aquilo que reprime, que domina, que aniquila, em uma palavra: desumaniza. Mil Platôs compartilha da crítica de Foucault, para quem o marxismo de gabinete perdeu de vista o pensamento de Marx; as páginas do livro de Deleuze e Guattari parecem ecoar aquilo que Foucault havia escrito:

[...] se o poder é mesmo, em si, emprego e manifestação de uma relação de força, em vez de analisá-lo em termos de cessão, contrato, alienação, em vez mesmo de analisá-lo em termos funcionais de recondução das relações de produção, não se deve analisá-lo antes e acima de tudo em termos de combate, de enfrentamento ou de guerra? (2002, p. 22)

Deleuze e Guattari trabalham as duas hipóteses de Foucault, a primeira: que o poder é o que reprime, a segunda: o poder é a guerra. O capitalismo é a imensa máquina de guerra que não almeja colocar fim à violência, muito pelo contrário, é uma máquina que se alimenta da destruição. A ciência é a estratégia de dominação, o modo operatório da máquina. A ciência trata de sublimar a essência da destruição apresentando-a como a constante transformação da natureza em produção de bens de consumo, tanto os bens materiais quanto os bens simbólicos. A teoria mecânica tenta convencer que a natureza é mutante, que antes mesmo da vida humana inteligente, a própria natureza se encarregava de transformar a si mesma, e o fazia de maneira violenta, portanto, a história geológica tranqüiliza a consciência do capitalista e tenta convencer a opinião pública de que a indústria não faz algo novo, mas apenas se apropria da dinâmica da natureza em benefício da sociedade. É por demais batida esta falácia, o que dispensa comentários e digressões. As duas hipóteses de Foucault se apresentam como programa de pesquisa para as ciências humanas. A primeira tarefa é a refutação dos velhos paradigmas, o idealista e o dialético mecanicista, Mil Platôs devolve à dialética aquilo que lhe havia sido anestesiado, de um lado pelo liberalismo e de outro pela ambição irracional dos movimentos totalitários. O novo paradigma admite sem subterfúgios o saber como poder, e a ciência como atividade política por excelência, esta admissão não dirige o intento para a capitulação frente ao poder, ao contrário insiste na primazia do enfrentamento ao invés da reforma daquilo que reprime, pois não importa sublimar a repressão, é preciso colocar fim aos mecanismos de repressão. Evitar o reformismo é ter consciência de que o Estado é o produto de um desenvolvimento econômico determinável (Mil Platôs, vol. 5, p. 19), portanto, o objetivo do Estado é a sua perpetuação graças aos órgãos de poder criados com esta finalidade. O pensamento reformista apenas intervém no funcionamento desses órgãos sem suprimi-los, porque isso significaria colocar fim a essa forma de poder. A história ilustra os diversos tipos de Estado, todos eles exercendo o poder sobre todas as criaturas:

[...] é preciso dizer que o Estado sempre existiu, e muito perfeito, muito formado. Quanto mais os arqueólogos fazem descobertas, mais descobrem impérios. [...] Mal conseguimos pensar sociedades antigas que não tenham tido contato com Estados imperiais, na periferia ou em zonas mal controladas. Porém, o mais importante é a hipótese inversa: que o Estado ele mesmo sempre esteve em relação com um fora, e não é pensável independentemente dessa relação. (Mil Platôs, vol. 5, p. 23)

É contra o Estado e a sua máquina de guerra que determinados segmentos das ciências humanas dirigem a sua atenção. As novas ciências da sociedade configuram-se como zonas proximais. Os modernos acreditaram que o cérebro humano tem uma estrutura matemática que lhe permite assimilar os conteúdos matemáticos, da mesma maneira é possível pleitear a proximidade entre as ciências do homem e a sociedade. A investigação social está envolvida pelas questões psicanalíticas, econômicas e históricas. Recorrendo a estas grandes áreas do conhecimento humano — e também à bioética, à inteligência artificial, entre outras áreas emergentes — a filosofia se torna capaz de compreender os conceitos que sustentam as novas perspectivas para as ciências humanas, libertando-as das convicções aparentes que são usadas como expressão da verdade. O conceito de desterritorialização parece ser típico de uma filosofia pós-moderna, mas não é, a desterritorialização é obra do capitalismo, que aos olhos comuns parece opor Estados entre si, porém, a oposição é também aparente, porque o Estado nasceu como salvaguarda local para os interesses globais do sistema, de acordo com Deleuze & Guattari:

[...] o capitalismo não é absolutamente territorial, mesmo em seus começos: sua potência de desterritorialização consiste em tomar por objeto nem sequer a terra, mas o ‘trabalho materializado’, a mercadoria. E a propriedade privada não é mais a da terra ou do solo, nem mesmo dos meios de produção enquanto tais, mas a de direitos abstratos convertíveis. [...] Sob todos esses aspectos, dir-se-ia que o capitalismo desenvolve uma ordem econômica que poderia passar sem o Estado. E. com efeito, ao capitalismo não falta o grito de guerra contra o Estado, não somente em nome do mercado, mas em virtude da sua desterritorialização superior. (Mil Platôs, vol. 5, p. 152/153)

A análise de Deleuze e Guattari pretendeu deixar bastante explicita a contradição entre o poder e o saber; aparentemente, o saber sustenta o poder de Estado, contudo, é o capitalismo que sustenta os Estados como instâncias locais de poder, que efetivam o controle social das massas. O saber se submete a esta representação superficial que dá à ciência a aparência de órgão de Estado. Somente o capitalismo se sabe fluído e disperso sem se limitar pelas fronteiras fixas. O estabelecimento do novo caminho para as ciências demanda a refutação do dogmatismo metodológico. O novo método consiste na abordagem da realidade não mais como Mônadas estanques, fechadas e hierarquizadas, para em seu lugar introduzir a idéia de platôs, terrenos que se interligam não pela superfície e sim pelo subterrâneo; os platôs são lugares abertos, tanto acima quanto dos lados e ainda por baixo, são aberturas que permitem conexões em todas as direções, é oportuno lembrar que o livro Mil Platôs surgiu no momento em que a rede mundial de computadores interligados e formando uma infovia ainda não era a realidade efetiva e consolidada para as relações humanas daqueles segmentos que estão integrados ao sistema global. O platô está sempre no meio, nem início nem fim [...] uma região continuada de intensidades, vibrando sobre ela mesma, e que se desenvolve evitando toda orientação sobre um ponto culminante ou em direção a uma finalidade exterior (Mil Platôs, vol. 1, p. 33), assim os platôs crescem e transbordam lançando-se em oposição aos blocos de saber que se cristalizaram nos últimos quatrocentos anos como ciências — isoladas e hierarquizadas — cuja somatória, sempre a partir de um ponto fixo, resultava no discurso unitário da ciência que se contrapõe, domina e reprime os saberes das pessoas.

As coisas parecem paradas, mas não estão, o capitalismo foi capaz de atentar para esta qualidade da realidade, a guardou consigo para perpetuar a falsa idéia de que tudo precisa de um centro de sustentação e que tudo deve estar girando em torno desse centro: primeiro a terra, depois o sol e finalmente a pessoa humana. Contudo a centralidade da pessoa humana se mostrou falaciosa, tal como havia sido no antigo regime. A ciência do homem não incidiu na sua libertação, ao contrário, ela tem servido de instrumento de reprodução da dominação social que atua diretamente pelo capital e indiretamente pela força persuasiva da ciência. O paradigma rizomático consegue identificar a dinâmica do capitalismo, por isso oferece a nova possibilidade de explicação da realidade servindo-se da mesma representação, se o capitalismo é desterritorialização, então, a nova ciência deve oferecer a verdadeira configuração da realidade, que não se apresenta como território, como espaços estriados. O território, os espaços estriados são aqueles que foram submetidos à máquina de guerra, que passaram a ser espaços instituídos pelo aparelho de Estado (Mil Platôs, vol. 5, p. 179).

A ciência tradicional é uma concessão do poder econômico, ela se rebela contra esse poder, mas é impotente para vencê-lo, ela capitula, se mistura a ele no afã de reformá-lo, em seu fracasso a ciência acredita ter humanizado a única instância desumana. Da mesma maneira que a interpretação equivocada de Marx conduz ao oposto do seu pensamento: o totalitarismo em vez da liberdade, também a ciência se deixa agenciar pelo sistema eu é muito mais do que uma modalidade de produção. A crítica científica é a legitimação do sistema, porque esta crítica, tal como a ideologia alemã desprezada por Marx, é assimilada porque se deixa assimilar pelo sistema. A nova ciência, evita as aparências e enfrenta o sistema de poder percorrendo o mesmo espaço liso desterritorializado. Contudo, há uma diferença substancial entre a máquina de guerra do sistema e aquela da nova ciência, a primeira mutila o liso fazendo-o ficar estriado, a segunda almeja tão só percorrer o espaço liso para constatar sua grandeza. Esses espaços são definidos como Platôs que podem ser percorridos sem uma ordem arbitrária, fixa e imutável. O aprendizado de cada lugar, de cada Platô contribui para a formação de uma nova mentalidade.

O método para se conhecer os Platôs é o rizoma, nas palavras de Deuleuze & Guattari, o rizoma é uma antigenealogia (Mil Platôs, vol. 1, p. 32). Aqui se separam os pensadores franceses, a genealogia apenas informa sobre o estado das coisas, ela não é o enfrentamento almejado por Foucault, porque Foucault é um filósofo que inventa com a história uma relação inteiramente diferente que a dos filósofos da história, contudo, a história cerca, delimita, mas não diz o que somos [...]. Em suma, a história é o que nos separa de nós mesmos, e o que devemos transpor e atravessar para nos pensarmos a nós mesmos” (Deleuze, Conversações, p. 119). Para preservar o compromisso social inerente à atividade filosófica é preciso ir além dos autores assimilados, graças aos limites da genealogia de Foucault tornou-se possível para Deleuze & Guattari aventar a urgência da antigenealogia, que pode ser identifica nesta formulação:

Escreve-se a história, mas ela sempre foi escrita do ponto de vista dos sedentários, e em nome de um aparelho unitário de Estado, pelo menos possível, inclusive quando se fala sobre nômades. O que falta é uma Nomadologia, o contrário de uma história. (Mil Platôs, vol. 1, p. 35)

[1] O Professor Humberto Guido é Pós Doutor (PHD) em Filosofia e Professor Titular do Programa de Pósgraduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia – FACED/UFU.