domingo, 24 de maio de 2009

AS CIÊNCIAS HUMANAS: Entre o engajamento e o compromisso

Por Humberto Aparecido de Oliveira Guido[1]


O argumento desta exposição surgiu com a leitura dos textos dos seminários organizados por Foucault em meados da década de 70 do século passado no Collège de France, os textos foram reunidos sob o título Em defesa da sociedade, que foi propriamente o tema do seminário de 1976. O que chama a atenção do no trabalho de Foucault é o seu interesse devotado á compreensão da sociedade contemporânea e sua rede de poder que se alastra sem direção fixa, semelhante a um polvo, o capitalismo lança seus tentáculos em todas as direções, atuando em conformidade com a visão tridimensional da realidade. O título não deixa de ser ambíguo, pois o sistema capitalista age supostamente em defesa da sociedade, no entanto, a análise atenta revela os mecanismos de poder que são empregados tendo em vista a perpetuação da ordem vigente, aquilo que se apresenta como salvação da sociedade e salvaguarda do indivíduo pode ser entendido como força contrária à autonomia da sociedade, a palavra autonomia é empregada aqui ma acepção utilizada por Kant em seu escrito de intervenção Resposta à pergunta: que é esclarecimento? O artigo de Kant define a autonomia como o produto do processo de emancipação.

Historicamente a sociedade burguesa trouxe em sua bagagem a proposta de emancipação da sociedade, estando ela condicionada à liberdade do indivíduo, os pensadores dos séculos XVII e XVIII mostravam-se esperançosos quanto à realização deste intento, fazia parte das filosofias do período o cuidado dirigido á formação do novo homem. È interessante notar que cem anos antes do início do Século das Luzes, estando o mundo ocidental inserido no processo de mudança estrutural da sociedade, parte dos pensadores manifestavam um certo ceticismo em relação aos novos tempos. Montaigne, um dos representantes das primeiras gerações de burgueses bem sucedidos, não escondia o seu pessimismo quando observava o comportamento social da nova sociedade, em seus Ensaios quando rememorava uma ocasião na qual conheceu três indígenas brasileiros, ele lamentava o contato dos habitantes do novo mundo com as paisagens européias:

Três dentre eles (e como lastimo que se tenham deixado tentar pela novidade e trocado seu clima suave pelo nosso!), ignorando quanto lhes custará de tranqüilidade e felicidade o conhecimento de nossos costumes corrompidos, e quão rápida será a sua perda, que suponho já iniciada, estiveram em Ruen quando ali se encontrava Carlos IX. (Cap. XXXI, p. 105)

Boa parte da literatura da época, e não somente a cética, manifestava desalento quando refletia sobre os novos costumes, além de Montaigne, estão inscritos nessa perspectiva alguns dos escritores que se dedicavam ao gênero da utopia, outros que exercitavam o sarcasmo, nessa relação comparecem Rabelais, Erasmo, Tomás Morus, Étienne de la Boétie, entre outros. Para quem não tem familiaridade com a filosofia e a história, pode parecer que a crítica precoce da ordem recém instalada seja a expressão conservadora daqueles que se agarram aos escombros da velha ordem querendo-a mais do que qualquer vantagem que a nova ordem oferece. Não é essa a questão, pois os autores acima mencionados alimentam grandes esperanças quanto ao futuro, a crítica se dirige ao quadro ainda indeterminado da modernidade que traça velhas linhas por demais percorridas em vão pela sociedade humana.

A tensão manifestada nos escritos do século XVI passou desapercebida na análise de Foucault. Essas críticas por mais insipientes que possam parecer não deixam de ser, contudo, o diagnóstico das idiossincrasias da nova sociedade. A omissão não retira o mérito do trabalho de Foucault, mas certamente poderiam abrir novas possibilidades para a interpretação da complexidade da sociedade burguesa e do seu modo de produção. Aquilo que passa desapercebido da crítica social oferece novos elementos para a análise da atitude radical dos autores do século XVI, que se apresentaram como os primeiros filósofos sociais, apesar da negligência com que são vistos pela posteridade. O descontentamento com o jugo do antigo regime que aparece no ensaio de La Boétie, não é propriamente um manifesto anarquista, no entanto, o escrito do jovem poeta francês, ele morreu com 33 anos, ilustra muito bem o tempo inaugural da modernidade, um momento singular em que a autoridade é duramente criticada e a evocação da liberdade são os motivos da nova filosofia. O vigor das palavras de La Boétie faz parecer que ele viveu o século XVIII, se as palavras a seguir não fossem atribuídas a ele, poderia parecer que se trata de Rousseau, eis as palavras de La Boétie:

É o povo que se escraviza, que se decapita, que, podendo escolher entre ser livre e ser escravo, se decide pela falta de liberdade e prefere o jugo, é ele que aceita o seu mal, que o procura por todos os meios.
Se fosse difícil recuperar a liberdade perdida, eu não insistiria mais; haverá coisa que o homem deva desejar com mais ardor do que o retorno à sua condição natural, deixar, digamos, a condição de alimária e voltar a ser homem?
Mas não é essa ousadia o que eu exijo dele; limito-me a não lhe permitir que ele prefira não sei que segurança a uma vida livre.
Que mais é preciso para possuir a liberdade do que simplesmente desejá-la?

A consolidação da sociedade burguesa e do sistema capitalista corroborou para que as máximas humanistas fossem deixadas à margem da história em favor da nova ciência. O discurso filosófico daquele século não se mostra aos olhos hodiernos como manifestação intransigente do engajamento desses homens, suas palavras fluíam a partir da cosmologia moderna que reservou ao homem o assento privilegiado na disposição dos lugares que os corpos naturais ocupam no espaço, o homem é o ápice da criação, ele reina na Terra e sobre todas as criaturas, a igualdade natural é a grande máxima do pensamento político, embora o século XVI seja também o de Maquiavel, o encarregado de formular as bases da formação do príncipe moderno.

A igualdade natural ficou restrita à teoria do conhecimento, esta disciplina ficou encarregada de justificar o declínio da liberdade da pessoa humana em sociedade, porque a ótica moderna que atestou a liberdade atribuiu ao indivíduo a perda da liberdade em decorrência da sua negligência ao trilhar a estrada do sucesso. Erasmo havia dito que não se nasce homem, se faz homem, esta afirmação tencionou o sentido da liberdade que nos séculos seguintes seria objeto do debate da ciência política. A afirmação de Erasmo não atribuiu tanta ênfase à igualdade formal expressa na abertura do Discurso do método, as palavras de Erasmo querem atestar que a condição humana, a liberdade, é um projeto de vida construído durante a vida, desde a mais tenra idade — Erasmo dizia que o ventre materno é a primeira escola. O período de Erasmo foi marcado pelos progressos da história natural que já estavam bastante adiantadas na refutação da tese criacionista dos livros sagrados, contudo o pensador renascentista insistiu na idéia de que a liberdade não está naquilo que saiu das mãos da natureza, essa liberdade é construída.

Defensores da igualdade natural, os adeptos da teoria do conhecimento atribuíram à matemática a responsabilidade de tornar ato aquilo que existe desde sempre em potência, não em um indivíduo singular, mas na espécie como valor formal, este é um dos paradoxos da modernidade, um tempo em que se afirmou a dignidade do indivíduo, contudo, as afirmações sobre suas possibilidades eram sempre gerais sem considerar as condições sociais díspares em que se encontravam divididos os diversos estamentos sociais. A refutação da tradição foi a abertura que permitiu que se colocasse para fora da esfera educativa todos os conhecimentos que não se adequassem imediatamente ao more geométrico. A equação dos pensadores do século XVII contrastava com a síntese direta dos pensadores do século anterior, para os homens do seiscentos a igualdade é natural, então, somente uma educação voltada para as coisas naturais poderá conservar esta igualdade, a execução dessa tarefa deve deixar de fora todos aqueles conhecimentos que não podem ser reduzidos às grandezas matemáticas, o conhecimento matemático foi sinônimo de conhecimento científico, porque todas as ciências alcançam os seus propósitos aplicando a matemática nas suas atividades de investigação e dominação da natureza. Galileu Galilei foi o pensador que melhor sintetizou a importância da matemática para a expansão do conhecimento na perspectiva do saber é poder:

A filosofia [a sabedoria] encontra-se escrita neste grande livro que continuamente se abre perante nossos olhos (isto é, o universo), que não se pode compreender antes de entender a língua e conhecer os caracteres com os quais está escrito. Ele está escrito em língua matemática, os caracteres são triângulos, circunferências e outras figuras geométricas, sem cujos meios é impossível entender humanamente as palavras; sem eles nós vagamos perdidos dentro de um obscuro labirinto. (1987, p. 21)

A ignorância dos conhecimentos matemáticos relegava a pessoa humana a viver nas trevas, distantes de todas as idéias luminosas capazes de libertar o espírito humano das suas amarras colocadas pelas tradições antigas e medievais, religiosas e sociais. O aprendizado da matemática era o pré-requisito para a vida virtuosa, tal como fora na antiguidade, porém, a nova sociedade concebia a existência humana como um projeto de vida. Todos os homens nascem dotados de inteligência suficiente para ambicionar aquilo que querem ser, as desigualdades sociais decorrem da maneira como cada um se serve da inteligência, definida pelos modernos como a luz natural. Descartes foi um dos mais ardorosos defensores dessa igualdade natural: o poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso, que é propriamente o que se denomina o bom senso ou a razão, é naturalmente igual em todos os homens (1987, p. 29), o cultivo da razão contribui para aumentar a luza natural da razão, não para resolver esta ou aquela dificuldade de escola, mas para que em cada circunstância da sua vida, seu entendimento mostre á sua vontade o que é preciso escolher (1999, p. 4).

Descartes conseguiu preservar alguns traços da filosofia humanista, para ele a educação matemática é também educação moral, porque é de se esperar da matemática não apenas a solução de exercícios escolares, esta é a menor aplicação da ciência universal, o ensino da matemática deve contribuir para a formação da faculdade de julgar, conduzindo o aprendiz ao aprimoramento das suas escolhas almejando sempre o bom e o justo para que não somente o indivíduo, mas toda a sociedade humana alcance a emancipação intelectual, tornando-se mais justa e mais fraterna. Ainda no século XVII Descartes professava a sua esperança de um mundo melhor graças às novas descobertas científicas, para ele o novo mundo se tornava real porque as matemáticas eram as ciências mais fáceis e as mais claras de todas, e têm um objeto tal como o exigimos, pois que, salvo inadvertência, mal parece possível a um ser humano nelas enganar-se (1999, p. 9).

A mudança de rota ocorrida entre o século XVI e o os séculos posteriores configura-se como momento de descontinuidade, essa fratura não está em um ano ou uma década específica, não está escondida em um escrito que permanece desconhecido, a descontinuidade não será encontrada nos livros senão nas suas margens, nos saberes que se praticavam e que nem todos foram traduzidos em palavras impressas, a galáxia de Gutenberg ainda estava em expansão neste cenário em ebulição. A descontinuidade é o ponto de fuga que amplia a visão do todo, este ponto da arte renascentista não é um ponto fixo, ele pode estar em qualquer lugar, esse é o motivo da grande dificuldade do estabelecimento das ciências humanas, o seu objeto não é fixo. Foucault conseguiu formular um projeto de pesquisa para as ciências humanas inspirando-se nas páginas de Nietzsche, a genealogia, que foi assim descrita pelo pensador francês:

A genealogia seria, pois, relativamente ao projeto de uma inserção dos saberes na hierarquia do poder próprio da ciência, uma espécie de empreendimento para dessujeitar os saberes históricos e torná-los livres, isto é, capazes de oposição e de luta contra a coerção de um discurso teórico unitário, formal e científico. (2002, p. 15)

Os escritos deixados por Descartes centraram o vaticínio de Erasmo na consciência — na coisa pensante —, o dualismo contribuiu para aumentar a distância entre a igualdade natural e a liberdade individual, pois a secção da pessoa em corpo e intelecto, mantém de alguma maneira — mesmo que na profissão de fé involuntária do bom católico — a liberdade individual no plano da eternidade e sustenta a sujeição do corpo como sublimação das misérias humanas na esperança da redenção da dor, tendo na morte do corpo a glória da alma. O corpo perdeu a sua dignidade, ao contrário do que pode parecer à primeira vista a descoberta do corpo serviu para o seu assujeitamento, como dizia Foucault, quando se fala do corpo a referência é a algo que deve ser disciplinado, colocado no seu lugar.

O final do século XVII serviu para impor outros limites à igualdade natural, no momento em que Locke atestou que a propriedade privada está arrolada entre os dons naturais. A propriedade é o prolongamento do corpo, é ela que ameniza a frustração da morte do corpo da pessoa, porque não desaparece com o passamento da existência individual, a propriedade privada continua fazendo parte da existência do núcleo familiar. Na essência dos tratados sobre o governo civil, Locke deixou implícito que a igualdade natural não é absoluta, alguns nascem proprietários outros não, a conseqüência imediata dessa distinção natural é constituição do corpo político formado pelos proprietários, o cidadão pleno é o proprietário, seja ele o nobre decadente ou o burguês emergente.

A diferença entre Erasmo e Locke evidencia a arbitrariedade da interpretação da natureza, para alguns ela pode inspirar os mais elevados anseios de igualdade e fraternidade, e com a mesma intensidade reforçar os argumentos das desigualdades naturais que determinaram o projeto de vida, neste particular a ontogenia e a filogenia não se implicam, a pessoa fica entregue a própria sorte cumprindo em sua existência o seu fado carregando o seu fardo, não é necessário a aplicação da genealogia para notar a contradição do mundo burguês, o novo modo de vida conservou as desigualdades sociais atribuindo-lhes novo significado, elas não são obra do destino de cada um, mas simplesmente atestam o fracasso individual em um tempo no qual as oportunidades estão abertas a todos, alcançam o sucesso aqueles que — como dizia Maquiavel — sabem aproveitar as oportunidades, não é o príncipe e sim o burguês que passou a encarnar o homem de virtú.

O homem era o beneficiário da natureza que lhe havia concedido a liberdade para fazer da sua vida o seu patrimônio. Uma outra equação matemática passou a ser aplicada nos negócios da burguesia, essa equação só surgiu no final do século XVIII, mas teve em Locke o seu ponto de apoio. O homem burguês deve nortear a sua moral de acordo com o cálculo do prazer, uma equação matemática de autoria de Jeremias Bentham, que fixava como regra para as ações humanas o menor esforço tendo em vista o máximo prazer. Em suma, a sociedade burguesa admitia a igualdade natural, porém, a sociedade civil não é igualitária, ela se compõe de proprietários e não proprietários, somente os primeiros são cidadãos de primeira ordem, conseqüentemente, a equação matemática se aplicava a toda sociedade de maneira distinta: o menor esforço é o do burguês que responde pelo capital industrial, o maior esforço é o da classe trabalhadora que deve ser consumida na linha de produção capitalista, assim nesta equação matemática o prazer do burguês é a mortificação do trabalhador.

A atividade teórica de Foucault procurou reconstruir o quadro da modernidade, em que pese a omissão do pensamento do século XVI. O início da atividade se fez com as arqueologias das instituições sociais introduzidas pela sociedade burguesa: o hospital, o orfanato, o quartel, o cárcere, o manicômio, o colégio. Essas instituições estiveram encarregadas de acomodar os corpos em espaços reclusos — o cuidado para que o doente não dissemine por contágio os males do corpo, a criança desamparada sob os cuidados da caridade para fortalecer o corpo para o serviço braçal, o soldado instruído para o combate contra os inimigos da ordem, os delinqüentes cumprindo suas penas, o louco sendo purgado das suas alucinações, a criança e o adolescente recebendo instrução para a sua futura integração no mundo do trabalho. Estas instituições são órgãos de poder, elas se encontram nas extremidades do sistema e foram até recentemente pouco notadas, porque as ciências humanas devem se encarregar daquilo que está em circulação e não da história das condições de vida daqueles corpos alojados em espaços fechados e isolados da sociedade.

Foucault perverteu a filosofia política ao evidenciar que esta disciplina foi pervertida pelo poder. A máxima moderna do saber é poder condicionou não só a atividade científica, mas também a atividade filosófica que desde o Século das Luzes, compactua com aquela na sujeição dos saberes das pessoas. No lugar das análises gerais das relações de poder e das formas de governo, Foucault propôs a necessidade de se percorrer os meandros do poder, eis a primeira observação metodológica da genealogia:

[...] não se trata de analisar as formas regulamentadas e legitimadas do poder em seu centro, no que podem ser seus mecanismos ou seus efeitos de conjunto. Trata-se de apreender, ao contrário, o poder em suas extremidades, em seus últimos lineamentos, onde ele se torna capilar; ou seja: tomar o poder em suas formas e em suas instituições mais regionais, mais locais [...]. (2002, p. 32)

A filosofia pensada como sistema não se adequou ao método genealógico, lhe escapa a filigrana do poder, porque somente o poder colossal merece a atenção do filósofo e do cientista político. Mesmo a crítica mais contundente ao poder acaba contribuindo para o seu fortalecimento, porque a crítica, ou seja, a filosofia e a ciência almejam o poder, pensado sob o mesmo prisma do sistema, mudando apenas o foco de irradiação do poder. O filósofo e o cientista político podem mudar a perspectiva do olhar, nisto consiste a segunda observação metodológica da genealogia:

[não se trata de] considerá-lo [o poder] do lado de dentro, de não formular a questão [...] que consiste em dizer: quem tem o poder afinal? O que tem na cabeça e o que procura aquele que tem o poder? Mas sim de estudar o poder, ao contrário, do lado em que sua intenção — se intenção houver — está inteiramente concentrada no interior das práticas reais e efetivas; estudar o poder de certo modo, do lado de sua face externa. (2002, p. 33)

O limite da teoria política clássica é o Estado, a máxima iluminista de que o poder emana do povo e em seu nome é exercido se mostra como uma bela expressão retórica, contudo, o Estado não é esta instituição popular, a explicação para isso reside no fato de que o poder é privativo do sistema econômico, tal como ele foi gestado, tal como ele começou a ser aplicado, se perpetuando nos últimos quatrocentos anos. Qualquer análise que não se atenha à dinâmica do poder sta fadada a legitimá-lo. Boa pare da teoria política moderna está apoiada na concepção mecânica do mundo, tendo a natureza como o modelo de regulação do bom funcionamento do corpo político, em que pese o vínculo do capitalismo com as máquinas industriais que servem de metáfora para o corpo e para o mundo, o bom funcionamento do sistema demanda o trabalho das máquinas de guerra, que são dispositivos subliminares que atuam nas extremidades do sistema para lhe garantir a coesão. Diferente das máquinas fixas nas divisões das fábricas, as máquinas de guerra atuam ocupam todos os lugares, ela pode ser associada ao panopticon benthaniano, o olho onipresente do poder, assim:

O poder funciona. O poder se exerce em rede e, nessa rede, não só os indivíduos circulam, mas estão sempre em posição de serem submetidos a esse poder e também de exercê-lo. Jamais eles são o alvo inerte e consentidor do poder, são sempre seus intermediários. Em outras palavras, o poder transita pelos indivíduos, não se aplica a eles. (2002, p. 35)

O propósito da obra Mil Platôs é a crítica da ciência moderna. Esta entidade é bem mais ampla e complexa do que as representações ingênuas que são veiculadas nas publicações da literatura científica. A crítica da ciência é oportunidade para discutir a sociedade ocidental, especialmente o estágio moderno e também o contemporâneo, que ainda é permeado pelas práticas e valores modernos. Esta crítica é possível quando os partidários das ciências humanas abdicam da teoria da ciência dando lugar à filosofia como instância de discussão dos caminhos para a efetivação do estudo da sociedade tendo em vista a emancipação tanto do indivíduo quanto do coletivo. De início, Mil Platôs deixa nítida a refutação dos dois caminhos intentados a partir dos sistemas dos pensadores do século XIX, seja o cientificismo de Comte, seja a redução economicista da obra de Marx.

Em uma entrevista concedida logo após a publicação de Mil Platôs, Deleuze dizia que nos estudos filosóficos lhe desagradava sobremaneira o idealismo e a dialética. Porém, estas palavras devem ser avaliadas à luz do texto, pois se a crítica se dirige ao pensamento cativo, é preciso admitir também que a reflexão dos autores almeja a releitura, isto é, o resgate do significado das obras de Hegel e Marx libertas do formalismo das interpretações tendenciosas, que geram formulações que se distanciam da originalidade dos autores mencionados. A dialética é a chave de interpretação das ações humanas, ela não pode ser abandonada, contudo, a dialética mecanicista que se prende unicamente à ordem econômica configura-se como estratégia dogmática que pensa a tomada do poder, sem considerar o que é o poder. Aqui fica clara a distinção entre Marx e certa posteridade marxista, para o pensador alemão a tarefa da filosofia e da ciência é a superação da opressão gerada pela divisão do trabalho e pela dominação do capital, somente a abolição do poder de Estado contribuirá para a libertação humana, a nova sociedade surgirá no momento em que todas as etapas preparatórias tiverem sido executadas — a revolução proletária, a ditadura do proletariado ou o socialismo, finalmente a sociedade sem classes —, o que deverá culminar no fim do Estado.

O projeto de Marx deixou clara a sua aversão ao poder de Estado, que em última instância é o poder do capital, cuja eficácia decorre da efetivação da ciência como produção dos mecanismos de consolidação e reprodução do poder de Estado, que tira o seu sustento do consumo da natureza e da força de trabalho. A crítica do poder não foi assimilada pelos ideólogos marxistas, historicamente esses agentes reformadores estiveram mais empenhados na tomada do poder e negligenciaram na efetivação das demais etapas preparatórias da sociedade universal, ou a sociedade sem classes: o comunismo. A compreensão da filosofia de Marx empreendida por Foucault não deixa ser a crítica a um certo tipo de marxismo que compactua com a idéia de poder vigente. A crítica de Foucault evidencia o idealismo do marxismo de Estado, diametralmente oposto ao intento da práxis, ou a força do entendimento capaz de identificar no poder aquilo que reprime, que domina, que aniquila, em uma palavra: desumaniza. Mil Platôs compartilha da crítica de Foucault, para quem o marxismo de gabinete perdeu de vista o pensamento de Marx; as páginas do livro de Deleuze e Guattari parecem ecoar aquilo que Foucault havia escrito:

[...] se o poder é mesmo, em si, emprego e manifestação de uma relação de força, em vez de analisá-lo em termos de cessão, contrato, alienação, em vez mesmo de analisá-lo em termos funcionais de recondução das relações de produção, não se deve analisá-lo antes e acima de tudo em termos de combate, de enfrentamento ou de guerra? (2002, p. 22)

Deleuze e Guattari trabalham as duas hipóteses de Foucault, a primeira: que o poder é o que reprime, a segunda: o poder é a guerra. O capitalismo é a imensa máquina de guerra que não almeja colocar fim à violência, muito pelo contrário, é uma máquina que se alimenta da destruição. A ciência é a estratégia de dominação, o modo operatório da máquina. A ciência trata de sublimar a essência da destruição apresentando-a como a constante transformação da natureza em produção de bens de consumo, tanto os bens materiais quanto os bens simbólicos. A teoria mecânica tenta convencer que a natureza é mutante, que antes mesmo da vida humana inteligente, a própria natureza se encarregava de transformar a si mesma, e o fazia de maneira violenta, portanto, a história geológica tranqüiliza a consciência do capitalista e tenta convencer a opinião pública de que a indústria não faz algo novo, mas apenas se apropria da dinâmica da natureza em benefício da sociedade. É por demais batida esta falácia, o que dispensa comentários e digressões. As duas hipóteses de Foucault se apresentam como programa de pesquisa para as ciências humanas. A primeira tarefa é a refutação dos velhos paradigmas, o idealista e o dialético mecanicista, Mil Platôs devolve à dialética aquilo que lhe havia sido anestesiado, de um lado pelo liberalismo e de outro pela ambição irracional dos movimentos totalitários. O novo paradigma admite sem subterfúgios o saber como poder, e a ciência como atividade política por excelência, esta admissão não dirige o intento para a capitulação frente ao poder, ao contrário insiste na primazia do enfrentamento ao invés da reforma daquilo que reprime, pois não importa sublimar a repressão, é preciso colocar fim aos mecanismos de repressão. Evitar o reformismo é ter consciência de que o Estado é o produto de um desenvolvimento econômico determinável (Mil Platôs, vol. 5, p. 19), portanto, o objetivo do Estado é a sua perpetuação graças aos órgãos de poder criados com esta finalidade. O pensamento reformista apenas intervém no funcionamento desses órgãos sem suprimi-los, porque isso significaria colocar fim a essa forma de poder. A história ilustra os diversos tipos de Estado, todos eles exercendo o poder sobre todas as criaturas:

[...] é preciso dizer que o Estado sempre existiu, e muito perfeito, muito formado. Quanto mais os arqueólogos fazem descobertas, mais descobrem impérios. [...] Mal conseguimos pensar sociedades antigas que não tenham tido contato com Estados imperiais, na periferia ou em zonas mal controladas. Porém, o mais importante é a hipótese inversa: que o Estado ele mesmo sempre esteve em relação com um fora, e não é pensável independentemente dessa relação. (Mil Platôs, vol. 5, p. 23)

É contra o Estado e a sua máquina de guerra que determinados segmentos das ciências humanas dirigem a sua atenção. As novas ciências da sociedade configuram-se como zonas proximais. Os modernos acreditaram que o cérebro humano tem uma estrutura matemática que lhe permite assimilar os conteúdos matemáticos, da mesma maneira é possível pleitear a proximidade entre as ciências do homem e a sociedade. A investigação social está envolvida pelas questões psicanalíticas, econômicas e históricas. Recorrendo a estas grandes áreas do conhecimento humano — e também à bioética, à inteligência artificial, entre outras áreas emergentes — a filosofia se torna capaz de compreender os conceitos que sustentam as novas perspectivas para as ciências humanas, libertando-as das convicções aparentes que são usadas como expressão da verdade. O conceito de desterritorialização parece ser típico de uma filosofia pós-moderna, mas não é, a desterritorialização é obra do capitalismo, que aos olhos comuns parece opor Estados entre si, porém, a oposição é também aparente, porque o Estado nasceu como salvaguarda local para os interesses globais do sistema, de acordo com Deleuze & Guattari:

[...] o capitalismo não é absolutamente territorial, mesmo em seus começos: sua potência de desterritorialização consiste em tomar por objeto nem sequer a terra, mas o ‘trabalho materializado’, a mercadoria. E a propriedade privada não é mais a da terra ou do solo, nem mesmo dos meios de produção enquanto tais, mas a de direitos abstratos convertíveis. [...] Sob todos esses aspectos, dir-se-ia que o capitalismo desenvolve uma ordem econômica que poderia passar sem o Estado. E. com efeito, ao capitalismo não falta o grito de guerra contra o Estado, não somente em nome do mercado, mas em virtude da sua desterritorialização superior. (Mil Platôs, vol. 5, p. 152/153)

A análise de Deleuze e Guattari pretendeu deixar bastante explicita a contradição entre o poder e o saber; aparentemente, o saber sustenta o poder de Estado, contudo, é o capitalismo que sustenta os Estados como instâncias locais de poder, que efetivam o controle social das massas. O saber se submete a esta representação superficial que dá à ciência a aparência de órgão de Estado. Somente o capitalismo se sabe fluído e disperso sem se limitar pelas fronteiras fixas. O estabelecimento do novo caminho para as ciências demanda a refutação do dogmatismo metodológico. O novo método consiste na abordagem da realidade não mais como Mônadas estanques, fechadas e hierarquizadas, para em seu lugar introduzir a idéia de platôs, terrenos que se interligam não pela superfície e sim pelo subterrâneo; os platôs são lugares abertos, tanto acima quanto dos lados e ainda por baixo, são aberturas que permitem conexões em todas as direções, é oportuno lembrar que o livro Mil Platôs surgiu no momento em que a rede mundial de computadores interligados e formando uma infovia ainda não era a realidade efetiva e consolidada para as relações humanas daqueles segmentos que estão integrados ao sistema global. O platô está sempre no meio, nem início nem fim [...] uma região continuada de intensidades, vibrando sobre ela mesma, e que se desenvolve evitando toda orientação sobre um ponto culminante ou em direção a uma finalidade exterior (Mil Platôs, vol. 1, p. 33), assim os platôs crescem e transbordam lançando-se em oposição aos blocos de saber que se cristalizaram nos últimos quatrocentos anos como ciências — isoladas e hierarquizadas — cuja somatória, sempre a partir de um ponto fixo, resultava no discurso unitário da ciência que se contrapõe, domina e reprime os saberes das pessoas.

As coisas parecem paradas, mas não estão, o capitalismo foi capaz de atentar para esta qualidade da realidade, a guardou consigo para perpetuar a falsa idéia de que tudo precisa de um centro de sustentação e que tudo deve estar girando em torno desse centro: primeiro a terra, depois o sol e finalmente a pessoa humana. Contudo a centralidade da pessoa humana se mostrou falaciosa, tal como havia sido no antigo regime. A ciência do homem não incidiu na sua libertação, ao contrário, ela tem servido de instrumento de reprodução da dominação social que atua diretamente pelo capital e indiretamente pela força persuasiva da ciência. O paradigma rizomático consegue identificar a dinâmica do capitalismo, por isso oferece a nova possibilidade de explicação da realidade servindo-se da mesma representação, se o capitalismo é desterritorialização, então, a nova ciência deve oferecer a verdadeira configuração da realidade, que não se apresenta como território, como espaços estriados. O território, os espaços estriados são aqueles que foram submetidos à máquina de guerra, que passaram a ser espaços instituídos pelo aparelho de Estado (Mil Platôs, vol. 5, p. 179).

A ciência tradicional é uma concessão do poder econômico, ela se rebela contra esse poder, mas é impotente para vencê-lo, ela capitula, se mistura a ele no afã de reformá-lo, em seu fracasso a ciência acredita ter humanizado a única instância desumana. Da mesma maneira que a interpretação equivocada de Marx conduz ao oposto do seu pensamento: o totalitarismo em vez da liberdade, também a ciência se deixa agenciar pelo sistema eu é muito mais do que uma modalidade de produção. A crítica científica é a legitimação do sistema, porque esta crítica, tal como a ideologia alemã desprezada por Marx, é assimilada porque se deixa assimilar pelo sistema. A nova ciência, evita as aparências e enfrenta o sistema de poder percorrendo o mesmo espaço liso desterritorializado. Contudo, há uma diferença substancial entre a máquina de guerra do sistema e aquela da nova ciência, a primeira mutila o liso fazendo-o ficar estriado, a segunda almeja tão só percorrer o espaço liso para constatar sua grandeza. Esses espaços são definidos como Platôs que podem ser percorridos sem uma ordem arbitrária, fixa e imutável. O aprendizado de cada lugar, de cada Platô contribui para a formação de uma nova mentalidade.

O método para se conhecer os Platôs é o rizoma, nas palavras de Deuleuze & Guattari, o rizoma é uma antigenealogia (Mil Platôs, vol. 1, p. 32). Aqui se separam os pensadores franceses, a genealogia apenas informa sobre o estado das coisas, ela não é o enfrentamento almejado por Foucault, porque Foucault é um filósofo que inventa com a história uma relação inteiramente diferente que a dos filósofos da história, contudo, a história cerca, delimita, mas não diz o que somos [...]. Em suma, a história é o que nos separa de nós mesmos, e o que devemos transpor e atravessar para nos pensarmos a nós mesmos” (Deleuze, Conversações, p. 119). Para preservar o compromisso social inerente à atividade filosófica é preciso ir além dos autores assimilados, graças aos limites da genealogia de Foucault tornou-se possível para Deleuze & Guattari aventar a urgência da antigenealogia, que pode ser identifica nesta formulação:

Escreve-se a história, mas ela sempre foi escrita do ponto de vista dos sedentários, e em nome de um aparelho unitário de Estado, pelo menos possível, inclusive quando se fala sobre nômades. O que falta é uma Nomadologia, o contrário de uma história. (Mil Platôs, vol. 1, p. 35)

[1] O Professor Humberto Guido é Pós Doutor (PHD) em Filosofia e Professor Titular do Programa de Pósgraduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia – FACED/UFU.

Nenhum comentário:

Postar um comentário