sexta-feira, 21 de agosto de 2009

“ENSINAR EXIGE RESPEITO À AUTONOMIA DO SER DO EDUCANDO”

Por Carmem Lúcia Ferreira

Quando em Pedagogia da Autonomia, Freire se remete a este tópico, ele quer evidenciar a importância de se respeitar o direito que cada educando tem enquanto ser pensante e que como todo ser humano tem o direito de sentir “raiva porque capaz de amar”.
O sentido desta frase é profundamente instigante, pois mostra que com a mesma intensidade que podemos amar, também podemos sentir raiva. Sentir raiva de um sistema excludente que nos coloca dia a dia [educadores (as) e educandos (as)], à margem da degradação humana, sentir raiva do pouco caso com que a educação vem sendo tratada em nosso país, sentir raiva de ter que “brigar” por um pedaço de chão para sobreviver, em fim, sentir raiva por ter que andar sempre na contramão dos fatos e na maioria das vezes tendo que matar “um leão por dia”, para garantir a sobrevivência neste mundo, cuja direção está nas mãos dos opressores.
Freire (1981) discorre que “os opressores falsamente generosos, têm necessidade, para que a sua “generosidade” continue tendo oportunidade de realizar-se, da permanência da injustiça. A “ordem” social injusta é a fonte geradora, permanente, desta “generosidade” que se nutre da morte, do desalento e da miséria.”
Mas, educador por excelência, Paulo Freire, acredita que se possa dar rumo à outra vertente que não seja esta, começando por respeitar e não a ignorar a autonomia do “ser” do educando. Respeitar esta autonomia exige diálogo, exige entender que cada aluno traz consigo um acervo de informações, vontades, curiosidades, que vai muito além da disciplina a ser ministrada pelo educador. Cabe ao professor olhar este aspecto com criticidade e passar a mensagem para nossos educandos de que:
“[...] A grande generosidade está em lutar para que, cada vez mais, estas mãos sejam de homens ou de povos, se estendam menos, em gestos de súplica. Súplica de humildes a poderosos. E se vão fazendo, cada vez mais, mãos humanas, que trabalham e transformem o mundo.” (FREIRE, p.32, 1981).
Desta forma podemos entender que cabe ao professor (a), dentre outras tarefas, conciliarem a disciplina a ser dada com a rede de vivências que o educando já traz consigo. Não podemos tolher aquilo que nossos educandos têm de mais precioso: o direito de se afirmar no mundo e de fazer sua própria história.
Para isto é necessário a prática cotidiana da intervenção. Não se pode omitir deles [os educandos] sua real condição. É preciso situá-los sobre os reais motivos pelo qual se encontram em situações de miséria, é preciso desmistificar esta “coisa” que impregnaram nesses estudantes, como humildes, incapazes, minoria, marginalizados, dentre outros.
Se não estamos contentes com o que está nos sendo imposto, devemos nos armar contra as autoridades competentes e fazer valer nossos direitos, é assim que se faz educação, pensando, (re)pensando, lutando, exigindo, participando ativamente dos movimentos reivindicatórios, pois, é através destas intervenções que se pode mudar o rumo da história.
Embora, Paulo Freire tenha dedicado a maior parte de sua militância, enquanto educador, à alfabetização de adultos, quando ele se refere a questão da “autonomia” dos educandos, esta não está direcionada somente aos adultos. Contextualizando a discussão, Vygostsky, mentor da corrente teórica denominada Psicologia Sócio-Histórica, percebe e vê a criança não apenas como produto da história, mas também como sujeito da história, pelo fato de construir e transformar a sociedade.
Ele ainda aborda que as crianças possuem sua linguagem própria (sua autonomia) de se expressar através das balbucias e brincadeiras. O brincar está para as crianças, assim como o trabalho para os adultos. Neste sentido, deve-se respeitar e entender esta fase que requer pesquisa e dedicação. E, é importante ressaltar que as crianças não chegam até a escola como uma “tábua rasa”, sem nada de concreto que não possa ser trabalhado.
Nesta vertente, Gramsci, afiança;

A consciência individual da esmagadora maioria das crianças reflete relações civis e culturais diversas e antagônicas às que são refletidas pelos programas escolares: o “certo” de uma cultura evoluída torna-se “verdadeiro” nos quadros de uma cultura fossilizada e anacrônica, não existe unidade entre escola e vida e, por isso, não existe unidade entre instrução e educação. (GRAMSCI, 1979, p.131)

Asseverando a formulação do autor, é de fundamental importância estabelecer esta ligação ente “escola e vida”. Freire, através de seus ensinamentos conseguiu praticar esta afirmação, a todo instante ele nos mostra na prática, como se dá este processo.

A educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometem com a libertação não pode fundar-se numa compreensão dos homens como seres “vazios” a quem o mundo “encha” de conteúdos; não pode basear-se numa consciência espacializada, mecanicistamente compartimentada, mas nos homens como “corpos conscientes” e na consciência intencionada ao mundo. Não pode ser a do depósito de conteúdos, mas a da problematização dos homens em suas relações com o mundo. (Freire, 1981, p.77) (grifo do original).

O autor enfoca questões, tomando por base o ambiente cotidiano, no qual vivem os alunos, advindos das periferias pobres das cidades, analisando a discrepância existente entre o modelo educacional que orienta a escola tradicional, quando confrontado com esta realidade, marcada profundamente, pela exclusão e pela marginalização dos educandos que vivem nestas localidades.
A prática educativa com os setores populares pressupõe o entendimento da rede de vivências sociais, como: desemprego, subnutrição, falta de saneamento, falta de condições de higiene, fome, miséria, falta de carinho, amor, dentre outras. Neste caso, o educador deve estar aberto às relações ensinar/aprender e ensinar/aprender o que significa colocar-se nas condições da realidade do cotidiano dos educandos, fazendo a relação entre as vivências sociais, sua realidade concreta com os conteúdos escolares, com os quais se trabalham.

TAVARES; ALARCÃO, (2001), advertem sobre a relação professor/aluno advinda do cotidiano escolar:
[...] O poder era apenas do professor porque era ele que detinha o saber, de uma forma absoluta, indiscutível e com autoridade. O aluno era o ignorante, o inculto, o aprendiz que era preciso ensinar, conduzir, disciplinar, controlar. Por isso, a relação do professor com os alunos era naturalmente distante, uma relação de superioridade e, em conseqüência, esperava-se dos alunos uma atitude de docilidade e de obediência, própria do discípulo, seguidor, imitador. O objetivo da aprendizagem visava à aquisição dos conhecimentos transmitidos e à imitação do mestre, como o modelo a seguir. Desse modo, o aluno deixava-se formar, modelar, de acordo com os “moldes” preestabelecidos. (TAVARES; ALARCÃO, 2001, p.98)

Ora, a escola deve se constituir num local privilegiado, onde se possam debater as desigualdades sociais, os preconceitos, a discriminação. A escola deve se colocar como um canal onde se possa debater sua própria crise, a ligação e os vínculos que a mantém ligada a um projeto de sociedade que privilegie a cultura, as artes, a criatividade e traga de volta a dignidade dos educandos. É este o modelo de escola que se deve discutir. É preciso urgentemente descartar o discurso do projeto educacional igualitário e homogeneizador, que considera jovens e crianças como coisas, moldáveis aos anseios, desejos e necessidades de uma elite conservadora, que faz da escola um instrumento ideológico de dominação.
O diálogo estabelecido entre os autores citados no decorrer do texto trouxe à baila algumas possibilidades de interações entre educadores e educandos em busca de um novo modelo da relação ensino/aprendizagem, onde se tenha a preocupação central do desenvolvimento da relação dialógica entre professor, aluno e comunidade, na qual a escola está inserida.
Por fim, abordam que a escola deve rediscutir seu papel enquanto formadora de novos sujeitos, os quais possam intervir, de forma efetiva, para a transformação social. apontando para a construção de um modelo educacional que valorize as diferenças e a singularidade dos educandos.
Enfocando que é necessária a reflexão acerca da relação que a escola estabelece com os educandos e com as comunidades, nos tempos atuais. Partindo dessas reflexões, é possível iniciar a elaboração teórico/prática de um projeto educacional que vá de encontro a um outro modelo de sociedade, que resgate a dignidade do educando, sob a ótica de um novo paradigma, que (re) signifique a essência de sua existência.

REFERÊNCIAS

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 9 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
________.; SHOR, IRA. Medo e Ousadia: o cotidiano do professor. Trad, Adriana Lopez; revisão técnica: Lólio Lorenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
GRAMSCI, A. Os Intelectuais e a Organização da Cultura. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
TAVARES, J; ALARCÃO, I. Paradigmas de formação e investigação no ensino superior para o terceiro milênio. In: Alarcão, I. (org). Escola reflexiva e nova racionalidade. Porto Alegre: ARTMED, 2001, p.98-114

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