quarta-feira, 25 de março de 2009

A DISCIPLINARIZAÇÃO DOS CORPOS E O DISCURSO CARTESIANO: DIALOGANDO COM FOCAULT E DESCARTES



Por Adriana Pessato

Foto ao lado: Michel Foucault. Fonte: USP

Introdução

No decorrer dos séculos os homens criaram diversas regras que se alteravam de tempos em tempos para sustentar um determinado estilo de vida. Mudanças radicais na forma do ser humano relacionar-se com o próprio corpo surgiram na produção industrial, a vida humana, antes no compasso das necessidades fisiológicas corporais em que os hábitos e horários eram de acordo com seu ritmo vital, foi gradativamente sendo regida por uma lógica externa ao corpo. Para Duarte Júnior (1997) a Revolução Industrial significou um processo de reeducação do corpo humano. O corpo foram gradativamente colocados à lógica da exatidão, da eficiência de movimentos, da usurpação da própria identidade para se tornar iguais na produção do modelo capitalista.
A visão cartesiana e seus múltiplos aspectos
A relação do homem com o corpo em diversos momentos históricos foi objeto de poder, desde as idades mais remotas até os dias atuais. Descarte ao buscar uma explicação científica que fosse capaz de explicar os fenômenos científicos, criou o “discurso do Método” em que adota os fundamentos matemáticos e a razão como exercício intelectual do ser humano tendo como primeiro princípio a máxima “penso, logo existo.” [...] Compreendi então que eu era uma substância cuja essência ou natureza consiste somente no pensar e que, para ser, não necessita de lugar algum, nem depende de qualquer coisa material. (DESCARTE, 2008, p.40).Percebe-se nesse fragmento textual, a importância dada ao ato de pensar ligada ao ser. Assim nessa máxima há uma desconsideração pela multidimensionalidade do ser humano que não é somente um ser pensante, tem todo um universo psíquico, emocional, social, político além do racional como dá a atender esse princípio de Descartes. Ele ignora o fato de que ele próprio ao formular seus princípios utiliza da emoção, da paixão para buscar as verdades reveladas. Morin (2005) nos dá subsídio para fazer um contrapondo a Descarte:

[...] no mundo humano, o desenvolvimento da inteligência é inseparável do mundo da afetividade, isto é, da curiosidade, da paixão, que, por sua vez, são a mola da pesquisa filosófica ou científica. A afetividade pode asfixiar o conhecimento, mas pode também fortalecê-lo. Há estreita relação entre inteligência e afetividade: a faculdade de raciocinar pode ser diminuída, ou mesmo destruída, pelo déficit de emoção. [...] Portanto, não há um estágio superior da razão dominante afeto e, de certa maneira, a da emoção, mas um eixo intelecto-afeto e de certa maneira, a capacidade de emoções é indispensável ao estabelecimento de comportamentos racionais. (MORIN, 2005, p.20)

Morin (2005) nos auxilia na percepção das entrelinhas do discurso cartesiano que qualifica o homem como ser racional, desvalorizando as emoções, Descarte ao adotar o modelo de homem - razão propicia o raciocínio lógico capaz de universalizar qualquer indivíduo. Em Nojosa (2006) temos um complemento a nossas reflexões ao afirmar que:

Essa condição de universalizar a razão, como essência igualitária para qualquer homem, em qualquer espaço territorial, cria um universalismo que anula a idéia de diversidade cultural e, por conseguinte, de corporeidade. Suas reflexões estão centradas em um dilema de pensar o homem dentro do arquétipo teológico de isolar razão e corpo. (NOJOSA, 2006 p.68)

Outro fato importante a ser considerado é que ao adotar os fundamentos da matemática e a razão Descarte fragmenta a ciência, pois descarta todo o conhecimento produzido fora do discurso matemático, eliminando as diversas concepções de vida e de idéias filosóficas acerca do pensamento social. A ciência validada é a que se constrói de forma neutra, o que apontamos no parágrafo anterior ser uma contradição do próprio método cartesiano, entretanto esse discurso cartesiano propiciou o discurso da neutralidade científica, do discurso matemático como forma de conseguir chegar a verdades científicas. Em relação a esses discursos da verdade Focault afirma:

Em qualquer sociedade – múltiplas relações de poder perpassam , caracteriza, constituem o corpo social, elas não podem dissociar-se, nem estabelecer-se, nem funcionar sem um a produção, uma acumulação, uma circulação, um funcionamento do discurso verdadeiro. Não há exercícios do poder sem uma certa economia dos discursos de verdade que funcionam nesse poder, a partir e através dele. Somos submetidos pelo poder à produção da verdade e só podemos exercer o poder mediante a produção da verdade. (FOCAULT, 1999 p.29)

Assim o discurso da verdade passa a ser o discurso matematizado, racional, que transformou todos os homens em iguais foi utilizado pelo capitalismo industrial a fim de extrair trabalho produtivo dos corpos. Os corpos gradativamente transformaram-se em produto de trabalho, o corpo na era industrial deixa de ser um mero e simples corpo humano para se transformar em máquina de trabalho produtivo, gerando lucro à sociedade capitalista. Entretanto para que esses corpos servissem e tivessem produtividade era necessário moldá-los a uma disciplina rígida de controle de seus atos, era necessário descorporificá-lo a fim de conseguirem o máximo rendimento em um determinado período de tempo. Para Focault (1977) o método disciplinar,era uma nova mecânica de poder que incidia sobre os corpos e sobre o que eles faziam , permitindo um controle das operações do corpo realizando a sujeição constante de suas forças e lhes impondo uma relação de docilidade-utilidade, tornando possível extrair deles tempo e trabalho. Um poder que é exercido por vigilância e fórmulas de dominação.

A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos dóceis. [...] A disciplina dissocia o poder do corpo... O poder disciplinar: é uma das grandes invenções da sociedade burguesa. Ele foi um dos instrumentos fundamentais da implantação do capitalismo industrial e do tipo de sociedade que lhe é correlativo. (FOCAULT, 1977, P. 43).

Os corpos ao se tornaram dóceis puderam ser submetidos e utilizados, transformados e controlados por um poder de coerção alheio a ele mesmo.
A disciplinarização dos corpos nas escolas
Assim como na sociedade as escolas também sofreram e ainda sofrem consequências do cartesianismo, em nossas escolas o saber científico é enaltecido e valorizado em relação aos outros saberes. Os conteúdos e saberes validados foram fragmentados, divididos e compartimentados pela escola. Para conseguirem transmitir tais conhecimentos a escola tanto quanto a sociedade fabril passaram por um poder disciplinar dos corpos envolvidos. Poder esse que se desenvolve ante as minúcias e os detalhes para que seja eficaz. O poder disciplinar usa o que Focault denomina de princípio da localização imediata, ou seja, cada indivíduo tem seu lugar marcado, a fim de anular aglomerações, circulação difusas, é importante estabelecer as presenças e as ausências, saber exatamente onde encontrar e como encontrar os indivíduos, interromper as conversas consideradas inúteis e acima de tudo dominar e utilizar os espaços. FOCAUTL (1975) Em sala de aula percebemos com nitidez o que Focault argumenta, pois as carteiras são dispostas em fileiras, da qual os alunos tem seus lugares determinados na maioria das vezes pelos docentes com a justificativa de organizar melhor a sala para o aprendizado. Para Focault:

[...] A ordenação por fileiras, no século XVIII, começa a definir a grande forma de repartição dos indivíduos na ordem escolar: filas de alunos na sala, nos corredores, nos pátios,... Determinando lugares individuais, tornou possível o controle de cada um e o trabalho simultâneo de todos organizou uma nova economia do tempo de aprendizagem .Fez funcionar o espaço escolar como uma máquina de ensinar, mas também de vigiar, de hierarquizar, de recompensa.( FOCAULT, 1975, p. 134)

Outra questão levantada por Focault é a relação do tempo escolar, que tornou cada vez mais detalhado e cercado de todas as atividades, o tempo disciplinar teria que ser o mais produtivo possível, assim os gestos corporais foram se ajustando para conseguir o máximo de eficiência . Em uma pesquisa em andamento percebemos que os alunos que não se adequam a esse poder disciplinar adotado mesmo que inconscientemente pelos professores são excluídos , exclusão essa extremamente sutil, pois encontra-se no ambiente escolar , entretanto não são incluídos nas atividades escolares.
Considerações Finais
Passamos por grandes transformações econômicas, política, e sociais, a escola como ponto de encontro de diversas culturas, crenças e diversidades pode e deve estar atenta aos diversos discursos utilizados para mascarar a realidade da exclusão social que oprime aqueles considerados diferentes. Vivemos em tempos de transformações, tempos de incertezas do porvir. A escola do novo século que se inicia tem um grande desafio em suas mãos: como preparar os cidadãos do futuro a fim de se relacionarem, com harmonia, a relacionar com o meio em que vive sem destruí-lo, a respeitar as diferenças como princípio primeiro de solidariedade, e aceitação do outro tal que é e para tanto torna-se necessário um estudo minucioso de todas as formas de repressão que se manifesta muitas vezes de forma tênue e fugaz, mas que em contrapartida se infiltra em toda a sociedade .
Referências
DESCARTE, René DISCURSO DO MÉTODO. Tradução e organização editorial de Ciro Mioranza, Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal Editora Escala SP, 2008.


DUARTE JÚNIOR, João Francisco,. Itinerário de uma crise: a modernidade. Curitiba. Ed. da UFPR, 1997

FOCAULT, MICHAEL. Em defesa da Sociedade. Curso no Collége de France. Tradução Maria Ermantina Galvão Editora Martins Fontes, SP, 1999.

FOCAULT, MICHAEL, Vigiar e Punir. Tradução Portuguesa, Petrópolis,editora Vozes, LTDA:1975.

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Trad. Catarina Eleonora F. Silva e Jeanne Sawaya. 2 ed. São Paulo: Corte, Brasília DF; UNESCO, 2000.

NOJOSA, Urbano. Diferença e identidade: O jogo perverso da in(ex)clusão social. In Garcia, Wilton. Corpo e Subjetividade – estudos contemporâneos Wilton Garcia, organizador – S.P: editora Factash , 2006

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