quinta-feira, 26 de março de 2009

UMA ESCOLA PARA ALÉM DO CAPITAL: Por um currículo que rompa com a ordem estabelecida*


Por Valter Machado da Fonseca

Foto ao lado: Bernard Charlot

1 – INTRODUÇÃO

Quando se fala em currículo, se lembra de construção, de definição de conteúdos, de estabelecimento de padrões, de regras, de escala de prioridades, tudo dentro de certas normas preestabelecidas e seguindo determinada lógica para a organização, produção, reprodução e distribuição de conhecimentos. Quando se refere ao currículo lembra-se, sobretudo, de obediência a uma série de critérios preestabelecidos e pré-organizados segundo a orientação quase que imutável de “especialistas”, cujas funções são organizar, definir, redefinir e priorizar conteúdos, segundo métodos supostamente neutros e isentos de intenções, como se eles (os especialistas) fossem isentos da capacidade de errar e, ao mesmo tempo, fossem donos de uma verdade quase que absoluta, dogmática, indestrutível.
Na verdade, a simples lembrança do termo currículo leva a essas prerrogativas, devido às práticas sociais, políticas e históricas que, ao longo de centenas de anos, vêm atuando sobre o processo educativo. E o currículo é a ferramenta de controle, responsável por regular este processo. É a forma mais eficiente para controlar e organizar o fluxo de conhecimentos que pode chegar aos diversos setores da sociedade é, sobretudo, aquilo que os “especialistas” determinam que seja “significativo” para os educandos. Em última instância, é a síntese do discurso dos controladores do processo de produção do conhecimento científico “válido” para as diferentes camadas da sociedade. É a ordem do discurso estabelecido pelos dominantes para manter o domínio sobre o processo educacional.
Esse artigo pretende enfocar esses aspectos, num primeiro momento, e num segundo momento pretende ousar construir algumas provocações e alguns desafios dirigidos ao conjunto dos educadores, no sentido da transgressão da ordem do discurso hegemônico, estabelecido para manter o status quo do processo educacional, que permeia os tempos modernos. Para tanto, este artigo também argüirá sobre a função e os limites da profissão docente, além da necessidade de uma formação diferenciada dos educadores, para a construção de uma visão crítica dos mesmos, objetivando a transgressão dos limites impostos pelo atual modelo curricular.

2 – Contextualizando o processo educacional dos tempos modernos

Para se ter a exata compreensão da educação na modernidade, é preciso situá-la na conjuntura atual, destacando os elementos que caracterizam as crises civilizacional, da educação, das técnicas e da ciência.
Vive-se um período marcado pela crise intensa da técnica e da ciência, pelas opacidades, pela coisificação do homem e da natureza. Vive-se num tempo onde os projetos de homem e de natureza, se perdem no “buraco negro” resultante da crise capitalista dos tempos modernos. Vive-se um período onde coexistem dois mundos: o primeiro, trata-se de um submundo virtual dirigido por tecnocratas insanos, os quais são responsáveis por ditar os destinos e os rumos da humanidade. Pairam sobre ela como juízes supremos, intocáveis, que a todos podem julgar e por ninguém podem ser julgados. O segundo, trata-se de um submundo real e, ao mesmo tempo virtual, habitado pela grande maioria da população global, imersa no gigantesco lamaçal da corrupção, da miséria, desemprego, fome, violência, etc. Trata-se de uma sociedade chamada de “altamente informatizada”, mas que, no fim das contas desinforma, que no fim das contas atomiza as pessoas como partículas insignificantes dentro do colossal universo da degradação ambiental e da degradação econômica, política e cultural do ser humano. Trata-se de uma sociedade que coloca o homem na luta contra sua própria espécie e, em última instância o coloca na luta pela derrocada de todo o sistema planetário, para, enfim, glorificar e fazer triunfar a mais valia como mola mestra do modo de produção capitalista. Boaventura de Sousa Santos (2001) realça com muita propriedade esta situação:

Como é que a ciência moderna, em vez de erradicar os riscos, as opacidades, as violências e as ignorâncias, que dantes eram associados à pré-modernidade, está de facto a recriá-los numa forma hipermoderna? O risco é actualmente o da destruição maciça através da guerra ou do desastre ecológico; a opacidade é actualmente a opacidade dos nexos de causalidade entre as ações e as suas conseqüências; a violência continua a ser a velha violência da guerra, da fome, da injustiça, agora associada à nova violência da hubris industrial relativamente aos sistemas ecológicos e à violência simbólica que as redes mundiais da comunicação de massa exercem sobre as suas audiências cativas. Por último, a ignorância é actualmente a ignorância de uma necessidade (o utopismo automático da tecnologia) que se manifesta com o culminar do livre exercício da vontade (a oportunidade de criar escolhas potencialmente infinitas). (SANTOS, 2001, p.58).

É dentro deste contexto que se situa a sociedade da modernidade. É neste contexto, onde o homem coisificado e atomizado luta, desesperadamente, em busca de um novo paradigma, o qual resgate a sua dignidade e dê a ele nova significação e uma razão real para sua existência. É, ainda, neste contexto que se degladeiam a forças oriundas do racionalismo/positivismo e as forças oriundas da gestação de um novo paradigma que resignifique a existência humana.

2.1 - A ciência no contexto da crise da modernidade

A crise do modo de produção da sociedade dos tempos modernos reflete a crise da produção do conhecimento científico. Em nome da neutralidade dos métodos e procedimentos apropriados pelas ciências, se propaga um discurso que visa justificar as contradições, ambigüidades, dicotomias e discrepâncias que mantém a ideologia hegemônica do atual modelo de produção dos tempos modernos.
István Mészáros (2004) tece uma importante consideração a este respeito:

Em parte alguma o mito da neutralidade ideológica – a autoproclamada wertfreiheit, ou neutralidade axiológica, da chamada “ciência social rigorosa” – é mais forte do que no campo da metodologia. Na verdade, encontramos com freqüência a afirmação de que a adoção deste ou daquele quadro metodológico nos isentaria automaticamente de qualquer controvérsia sobre os valores, visto que eles são sistematicamente excluídos (ou adequadamente “postos entre parênteses” ) pelo próprio método cientificamente adequado, poupando-nos assim de complicações desnecessárias e garantindo a objetividade desejada e o resultado incontestável. [...] na verdade, esta abordagem da metodologia tem um forte viés ideológico e conservador. [...] acredita-se que a mera insistência no caráter puramente metodológico dos critérios estabelecidos legitima a afirmação de que a abordagem em questão é neutra porque todos podem adotá-la como o quadro comum de referência do “discurso nacional”. Mas, muito curiosamente, os princípios metodológicos propostos são definidos de tal forma que áreas de grande importância social são excluídas a priori deste discurso nacional por serem “metafísicas”, “ideológicas”, etc. (MÉSZÁROS,2004, p.301) (Grifos do autor)

É preciso identificar o conhecimento como algo criado, produzido e reproduzido durante milhares de anos e, como fruto da produção humana é passível de erros, equívocos e acertos. Como fruto da produção humana não são eternos, acabados, definitivos e, portanto, não podem se constituir em verdades absolutas. O conhecimento é, pois, algo construído segundo as experiências e anseios humanos e, desta forma encharcado de intenções, algumas delas as piores possíveis.
PETER BURKE (2003) afirma que “a maioria dos estudos sobre o conhecimento se ocupa do conhecimento das elites, ao passo que os estudos de cultura popular têm relativamente pouco a dizer sobre seu elemento cognitivo, o conhecimento popular ou cotidiano”. De fato, o conhecimento considerado válido é aquele que serve para legitimar a lógica do chamado “progresso”, arduamente defendido pelas elites, em cada período da história da humanidade. Desta forma, o conhecimento produzido pela maioria das populações é considerado inválido, inútil, descartável, contrário às idéias de progresso consagrada através dos tempos pelas elites.
Esta “lógica” que permeia a produção do conhecimento é a mesma que sustenta os discursos educacionais. Mészáros (2005) enfatiza o papel da educação na sociedade capitalista:

A educação institucionalizada, especialmente nos últimos 150 anos, serviu – ao propósito de não só fornecer os conhecimentos e o pessoal necessário à máquina produtiva em expansão do sistema do capital, como também gerar e transmitir um quadro de valores que legitima os interesses dominantes, como se não pudesse haver nenhuma alternativa à gestão da sociedade, seja na forma “internalizada” (isto é, pelos indivíduos devidamente “educados” e aceitos) ou através de uma dominação estrutural e uma subordinação hierárquica e implacavelmente impostas. (MÉSZÁROS, 2005, p.35) (Grifo do autor)

A citação de Mészáros demonstra a lógica do arcabouço teórico-discursivo que legitima o modelo econômico capitalista em todos os tempos. É essa “lógica” que determina o progresso da ciência e o desenvolvimento das forças produtivas no modelo de desenvolvimento dos tempos modernos.
E, nesta direção grande parcela da comunidade científica perpetua o discuso positivista, falando em nome da racionalidade do racionalismo. A defesa da pretensa neutralidade científica acaba por solidificar, cada dia mais, os alicerces da “lógica” positivista, perpetuando, assim, a exploração do homem pelo próprio homem. Para parcela significativa de cientistas, tudo que foge à explicação “lógica” das ciências naturais e de seus métodos e critérios, não serve para nada, pois, passa por fora do “discurso”
[1] da ciência, tudo precisa ser explicado segundo enunciados, leis e teorias lógicas, portanto, a subjetividade humana e suas necessidades não possuem validade científica. Boaventura de Sousa Santos (2001) formula desta maneira esta preocupação:

O argumento fundamental é que a ação humana é radicalmente subjetiva. O comportamento humano, ao contrário dos fenômenos naturais, não pode ser descrito e muito menos explicado com base nas suas características exteriores e objetiváveis, uma vez que o mesmo ato externo pode corresponder a sentidos de ação muito diferentes. A ciência social será sempre uma ciência subjetiva e não objetiva como as ciências naturais; tem de compreender os fenômenos sociais a partir das atitudes mentais e do sentido que os agentes conferem às suas ações, para o que é necessário utilizar métodos de investigação e mesmo critérios epistemológicos diferentes das ciências naturais, métodos qualitativos em vez de quantitativos, com vista à obtenção de um conhecimento intersubjetivo, descritivo e compreensivo, em vez de um conhecimento objetivo, explicativo e nomotético. Esta concepção de ciência social reconhece-se numa postura antipositivista. (SANTOS, 2001, p.67)

Então, a ciência nos dias atuais se confronta com dois modelos diferenciados: há os que defendem a neutralidade da produção do conhecimento científico, e que no fim das contas fazem o discurso da manutenção do status quo, ou seja da continuidade do modelo positivista e, há os que se rebelam contra esta ordem estabelecida, procurando formular novas questões e responder antigas indagações, tendo como objetivo a construção de um novo paradigma, por meio da ruptura com a irracionalidade do racionalismo.

3 - O discurso hegemônico nas entrelinhas do currículo

Pode-se afirmar, com toda a certeza, que o currículo é a materialidade da formalização do ensino. E, diante dessa constatação, ele exprime, com grande eficiência, o discurso que delimita as fronteiras entre a produção do saber/conhecimento e a distribuição/redistribuição/apropriação deste conhecimento.
Aqui não se trata de adotar uma visão reprodutivista da educação, mas, sobretudo, de reforçar o papel institucionalizante do discurso curricular. Sendo assim, o currículo assume o papel preponderante de seguir a dinâmica do modelo educacional fundado sobre a égide da escola tradicional, dentro da concepção e dos moldes do pensamento cartesiano. Dessa forma, ele justifica o modo como se organizam os conteúdos, em gavetas e/ou em compartimentos estanques. Ele justifica os critérios estabelecidos para a priorização de certos conteúdos, que, ao invés de expressarem a significação da realidade cotidiana dos educandos, ele os condiciona de acordo com as prioridades e as necessidades da reprodução e expansão do capital. Pode-se afirmar, portanto, que o currículo é organizado de maneira eficaz, que permita dirigir a educação para atender a economia de mercado.
É importante salientar ainda que, o currículo é fruto das experiências práticas do processo educacional, ao longo da história das sociedades e, como tal ele exprime os aspectos políticos, econômicos e sociais que marcaram e marcam o desenvolvimento dessas sociedades. Então, ele possui, em maior ou menor grau, elementos que exprimem os avanços e recuos das lutas entre as classes sociais que marcaram a evolução e o desenvolvimento das sociedades. Diante desses elementos, ele reflete as desigualdades políticas, econômicas e sociais inerentes da sociedade de classes.
Diante dessas considerações, pode-se salientar que o currículo, na sociedade capitalista da modernidade, reflete não somente a crise e contradições deste modelo econômico, mas, sobretudo, as crises da educação, das ciências e das técnicas. Assim, os “especialistas” responsáveis pela elaboração das propostas curriculares, em sua grande maioria, direcionam esta elaboração seguindo a lógica do discurso da hegemonia capitalista, mesmo com os recentes discursos de “escola cidadã”, “participação paritária”, “escola para todos”, dentre outros. A ordem do discurso estabelecida para a produção do saber/conhecimento é a mesma para a elaboração da grande maioria das propostas curriculares.

4 - A relação do currículo com as práticas de ensino

O conhecimento, como fruto das atividades humanas, é construído segundo a atividade intelectual, como atividade decorrente do pensamento e consequentemente da subjetividade humana. E, como algo derivado da subjetividade está sujeito a transformações, portanto não se trata de algo definitivo, acabado, sendo, às vezes, imprevisível.
Dessa forma, as práticas de ensino não são controladas pelo conhecimento, o qual varia em quantidade e qualidade de pessoa para pessoa, conforme enfatiza Sacristán (1998):

O conhecimento não controla rigorosamente a prática porque não existe um saber específico e inequívoco que assegure esse controle. Os paradigmas aproveitáveis e as contribuições concretas das quais se abre mão, em muitos casos, contraditórios entre si. A imprecisão do objeto, de seus fins, as formas variadas de chegar a resultados parecidos fazem do ensino uma atividade de resultados imprecisos e nem sempre previsíveis. Realidade que se choca com a racionalidade técnica que pretensamente quer desenhar as práticas pedagógicas apoiadas num conhecimento instrumental firme e seguro. (SACRISTÁN, 1998, p.173)

Dessa maneira, o conhecimento não se edifica sob o domínio da razão instrumental que move o desenvolvimento tecnológico, embasado nos métodos da racionalidade técnica e, portanto, não é um saber específico sob o domínio puro e simples da precisão metodológica das ciências naturais.
Então, a prática de ensino difere, de educador para educador, conforme seu domínio sobre determinada área do conhecimento. Isso faz com que o currículo, embora seja um instrumento de controle institucional, não seja interpretado da mesma forma pelos diversos educadores, sendo, muitas vezes remodelado pela prática de ensino. Assim, os educadores conseguem, mesmo que inconscientemente, burlar o currículo, modificando-o por intermédio de sua prática em sala de aula. Em grande parte das vezes esta modificação se realiza de forma inconsciente. É preciso uma ação permanente dos educadores comprometidos com a construção de um novo modelo educacional, no sentido de transformar estas práticas em ações conscientes e politizadas. Nesse sentido, Sacristán (1998) continua:

Se o currículo expressa o plano de socialização através das práticas escolares imposto de fora, essa capacidade de modelação que os professores têm é um contrapeso possível se é exercida adequadamente e se é estimulada como mecanismo contra-hegemônico. Qualquer estratégia de inovação ou de melhora da qualidade da prática do ensino deverá considerar esse poder modelador e transformador dos professores, que eles de fato exercem num sentido ou noutro, para enriquecer ou para empobrecer as propostas originais. A mediação não é realizada intervindo apenas diretamente sobre o currículo, mas também através das pautas de controle dos alunos nas aulas, por que, com isso, mediatizam o tipo de relação que os alunos podem ter com os conteúdos curriculares. (SACRISTÁN, 1998, p.165)

Nota-se que mesmo sendo um instrumento de controle, o currículo deixa brechas e lacunas, que podem ser preenchidas pela prática social dos educadores e pelos saberes, por eles construídos, fora do espaço institucional escolar. E são estas, exatamente, as lacunas nas quais devem ser cravadas as cunhas, enquanto ferramentas de remodelagem curricular.
Também a criatividade dos educandos deve ser explorada como importante suporte da modelagem do currículo, desta maneira, educadores e educandos estarão numa relação dialógica na construção de um outro modelo educacional, que rompa as amarras que os mantém atados à escola tradicional, representante do modelo positivista liberal-conservador. Paulo Freire dá ênfase à criatividade dos educandos:


A subjetividade funciona dentro das escolas. As escolas podem reprimir, e de fato o fazem, o desenvolvimento da subjetividade, como no caso da criatividade, por exemplo. Uma pedagogia crítica não deve reprimir a criatividade dos alunos (a repressão à criatividade vem sendo uma verdade no correr de toda a história da educação). A criatividade precisa ser estimulada, não só no nível individual do aluno, mas também no nível de sua individualidade num contexto social. (FREIRE, 1990, p.38-39)

Assim, a prática docente, em sala de aula, assume importante papel rumo à intervenção dos educadores, mesmo que de forma indireta, na organização dos conteúdos curriculares. Mas, somente a prática de ensino não é suficiente, no sentido de quebrar a ordem do discurso hegemônico que permeia o modelo educacional dos tempos modernos. Ela se faz necessária, mas não é suficiente.

4.1 - CONSTRUINDO A REBELDIA NO TRATAMENTO DOS CONTEÚDOS: por um currículo que rompa com a ordem do discurso hegemônico.

O cientificismo que permeia a organização curricular não expressa os anseios de educadores/educandos, que se reivindicam de uma educação comprometida com a solução dos reais problemas que assolam a sociedade, principalmente os setores populares. A educação, a escola, a cada dia mais, se afasta dos conteúdos realmente significativos para educadores e educandos. O discurso dos oprimidos é apropriado pela elite detentora do poder político e econômico, que fala em nome de uma escola igualitária, sem arestas, que desconsidera o grande abismo da desigualdade social entre os povos. Essa mesma educação é posta na mesa como uma mercadoria a serviço da reprodução e expansão do capital. O saber é institucionalizado em detrimento da apropriação do conhecimento técnico e científico por parte das grandes corporações financeiras multi e transnacionais, que sobrevivem à custa de um capital volátil e especulativo, que gira o planeta em busca do exército de mão de obra barata e superexplorada.
É necessário, urgentemente, redefinir o papel e a função social da escola, organizando os conteúdos curriculares de acordo com a realidade cotidiana dos educandos, dando a eles, o significado que fuja da lógica da mais-valia, que sobrevive da mercantilização do ensino. É preciso construir, retomar a verdadeira relação de identidade com o saber conforme define Bernard Charlot:

Toda relação com o saber, enquanto relação de um sujeito com seu mundo é relação com o mundo e com uma forma de apropriação do mundo; toda relação com o saber apresenta uma dimensão epistêmica. Mas qualquer relação com o saber comporta também uma dimensão de identidade[2]: aprender faz sentido por referência à história do sujeito, às suas expectativas, às suas referências, à sua concepção da vida, às suas relações com os outros, à imagem que tem de si e à que quer dar de si aos outros. (CHARLOT, 2000, p.72)

Ora, a relação com o saber se perde, a cada dia, uma vez que ele vem sendo, sistematicamente, transformado em mercadoria a serviço do capital, e o ser humano vem, cotidianamente, perdendo sua identidade histórica e cultural diante de uma globalização econômica aos moldes liberal-conservador.
A academia, a escola, deve se voltar para o resgate epistemológico da construção do saber, que seja realmente significativo para educadores e educandos, para um novo projeto educacional que rompa com o modelo falido da escola tradicional, que insiste em permanecer de pé, quando o modelo econômico de produção apresenta sintomas de podridão e encontra-se agonizante. A escola continua sendo um espaço privilegiado para se buscar alternativas concretas à irracionalidade do racionalismo.
Mas, para tal é preciso colocar em xeque este modelo educacional arcaico, ultrapassado, a começar pelo currículo, que reproduz a lógica da mercantilização da educação a serviço da reprodução do capital. Existem aqueles que acreditam, ainda, no projeto proposto pelo (neo?)liberalismo e/ou pela falácia da social democracia, ou seja, que é preciso reformar a escola, a educação, o currículo, dentro dos marcos do capitalismo, o que significa dizer que deve-se contentar com as migalhas que caem da mesa do farto banquete dos liberais conservadores.
Os tempos modernos vêm sendo marcados pela crise de projetos de homem e de natureza, ao lado da crise da racionalidade técnica e científica. São sintomas de um modelo falido, que não responde aos anseios da grande maioria da humanidade.
Mészáros (2004) faz referência à crise dos tempos modernos:

A verdade é que em nossas sociedades tudo está “impregnado de ideologia”, quer a percebamos, quer não. Além disso, em nossa cultura liberal-conservadora o sistema ideológico socialmente estabelecido e dominante funciona de modo a apresentar – ou desviar – suas próprias regras de seletividade, preconceito, discriminação e até distorção sistemática como “normalidade” e “imparcialidade científica”. Nas sociedades capitalistas liberal-conservadoras do Ocidente, o discurso ideológico domina a tal ponto a determinação de todos os valores que muito frequentemente não temos a mais leve suspeita de que fomos levados a aceitar, sem questionamento, um determinado conjunto de valores ao qual se poderia opor uma posição alternativa bem fundamentada, juntamente com seus comprometimentos mais ou menos implícitos. O próprio ato de penetrar na estrutura do discurso ideológico dominante inevitavelmente apresenta as seguintes determinações “racionais” preestabelecidas: a) quanto (ou quão pouco) nos é permitido questionar. b) de que ponto de vista. c) com que finalidade. (MÉSZÁROS, 2004, p.57-58)

A formulação de Mészáros, além de fazer a crítica à crise civilizacional, abre a possibilidade da reflexão sobre as lacunas da sociedade moderna. Estas brechas podem servir de canal de confrontação com o atual modelo econômico hegemônico no planeta. E é para esta confrontação que este tópico procurará apontar.
Dentro da crise civilizacional, a escola e a produção do saber/conhecimento debatem sua própria crise. É no sentido da ruptura com esta ordem estabelecida em favor da reprodução do capital, que os educadores (as) comprometidos (as) com a construção de um novo projeto educacional devem marchar. Garcia (2000) aponta nesta perspectiva:

Em sua luta pela construção de uma sociedade mais justa, solidária e igualitária se inclui a luta pelo direito à escola, pois que para construir uma sociedade realmente democrática há que se acompanhar a luta por um projeto político-pedagógico emancipatório, que vá preparando os novos homens e mulheres para juntos construírem uma nova sociedade. Não é qualquer escola que serve a propósitos emancipatórios. Aos que estão engajados num projeto emancipatório não interessa uma escola que conte a história dos vencedores, como se os temporariamente vencidos o tivessem sido por sua própria incapacidade ou por fraqueza. A escola que lhes interessa é uma escola que conte a história do ponto de vista dos invadidos, dizimados, escravizados, explorados, pilhados, assujeitados no perverso processo de colonização, cujos descendentes continuam em sua ação emancipadora. (GARCIA, 2000, p.8-9)

É em direção a este modelo político-pedagógico emancipatório que se deve orientar a desconstrução do discurso racionalista, procurando romper com a “lógica” positivista que norteia os tempos denominados de modernidade. É neste sentido que se deve erigir um novo projeto de homem e um novo projeto de natureza.
Lutar por um currículo de enfrentamento ao modelo liberal-conservador, é uma das primeiras tarefas rumo ao processo de ruptura com o modelo positivista/cartesiano de educação. Não se trata da construção de um currículo de reformas ao que aí está, mas um currículo para além do capital, um currículo que dê à escola um outro significado, que resgate a dignidade de educadores e educandos.
Há que se propor um modelo que expresse a ousadia, a rebeldia, o descontentamento. É preciso apontar um caminho de enfrentamento ao modelo liberal-conservador, o qual seja capaz de quebrar a “lógica” irracional do racionalismo. A produção do conhecimento científico deve ser capaz de rasgar a camisa de força da suposta neutralidade científica. Ora, o ser humano possui interesses, vontades, cobiças, anseios e desejos, portanto, é um grande equívoco falar em nome da neutralidade. Aqui, o que se coloca é uma clara disputa de projetos: projeto de homem e projeto de natureza e, a escola, os educadores não devem ficar em cima do muro, ou se esconder atrás dele. É urgente se posicionar, conseguir enxergar a escola por cima de seus muros, observar, no horizonte, a paisagem nublada que descortina os tempos modernos. É preciso quebrar, urgentemente, a ordem do discurso.

5 – Para não concluir!!!

Este ensaio procurou discutir as contradições que permeiam os elementos constitutivos do currículo, enquanto materialidade da educação formal. Para tanto, ele argüiu, num primeiro momento, sobre a crise da modernidade, que se configura numa crise de projetos de homem e de natureza. Dentro desta crise global de projetos, ele procurou identificar os elementos que caracterizam a crise na própria educação, a qual reflete as mesmas contradições da crise conjuntural que marca os tempos modernos.
Este artigo procura discutir, ainda, os limites das propostas curriculares, e a função do currículo como controlador e filtro dos conteúdos voltados para a reprodução do capital. Conclui-se que a educação nos tempos modernos vem, sistematicamente, se transformando em mercadoria a serviço da mercantilização do saber, como forma de direcionar a produção do conhecimento visando atender as demandas das grandes corporações financeiras multi/transnacionais.
Por fim, este artigo aponta no sentido da construção de um projeto político-pedagógico que seja capaz de romper com este modelo que visa manter o status quo do atual modelo de produção econômico. Propõe-se a luta por um projeto curricular que seja capaz de fazer o enfrentamento ao projeto liberal-conservador, que mantém o modelo positivista/cartesiano da escola tradicional.
Ele conclui que é preciso construir um outro modelo de escola, uma escola para além do capital, que seja capaz de repensar sua função social e resgatar a dignidade de educadores (as) e educandos (as).

7 – Referências

BURKE, P. Uma história social do conhecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.

CHARLOT, B. Da Relação com o Saber: elementos para uma teoria. Trad.Bruno Magne. Porto Alegre: ARTMED Sul, 2000.

FREIRE, P. Alfabetização: Leitura da Palavra, Leitura do Mundo/ Paulo Freire, Donaldo Macedo; Trad. Lólio Lourenço de oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.


GARCIA, R.L. Movimentos Sociais: escola – valores. In: Aprendendo com os Movimentos Sociais. Rio de Janeiro: DP & A, 2000.

MÉSZÁROS, I. A EDUCAÇÃO Para Além do Capital. São Paulo: Boitempo, 2005.

_________. O PODER DA IDEOLOGIA. Trad. Paulo César Castanheira, São Paulo: Boitempo, 2004.

SACRISTÁN, J. G. O Currículo: Uma Reflexão Sobre a Prática. Trad. Ernani F. da F. Rosa. Porto Alegre: ARTMED, 1998.

SANTOS, B de S. A CRÍTICA DA RAZÃO INDOLENTE: Contra o desperdício da experiência. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2001.

[1] Grifo do autor: aqui quer se destacar a ideologia contida e oculta na suposta neutralidade do método científico.
[2] Grifo do original

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